domingo, 16 de outubro de 2011

[0132] Um poema de Adriano Miranda Lima

(clique na imagem)
Em memória do navio cabo-verdiano "Ildut", do seu capitão João Pedro Martins e de todos os antigos marinheiros das águas das ilhas, o PRAIA DE BOTE republica um conhecido poema do nosso colaborador Adriano Miranda Lima. Vale a pena a coisa, não só pela elegância e engenho do verbo limiano como pelo gosto do blogue pelas coisas do mar e dos navios.

Indica AML que a composição não é a  reprodução fiel de qualquer acontecimento da realidade. Contudo, no seu fundo temático, e com o adorno ficcionista apropriado à circunstância, faz o poeta o aproveitamento do episódio real do naufrágio do "Ildut" e da atitude dramática do seu valoroso capitão.

Não tendo conhecimento de qualquer foto do "Ildut", o PRAIA DE BOTE conseguiu apenas saber, embora sem confirmação, que o veleiro pesava 105 toneladas e que naufragou em 17 de Março de 1970.


NA ROTA DO DESTINO
                     
                     
 - Santa Luzia, vós que estais hoje oculta na bruma,
 vós que no céu sabeis que nunca é vã coisa alguma,
 rogai por este navio da nossa inteira e fiel devoção,
 assim como vos dedicamos o amor que vai no seu porão!
 Prece de capitão é assim mesmo com força de mar bravo,
 proferida com a fé de marinheiro que vive sem agravo,
 em convés perfumado de breu, cordame e maresia,
 varrido às vezes por ondas que não têm  cortesia.
 Velas enfunadas vão agora na soltura do vento em desatino,
 estai e bujarrona, irmãs desfraldadas no mesmo destino,
 em mar que balança desaforado em ritmo extremo,
 com  espuma oscilante a marcar o compasso supremo.
 S. Nicolau é  destino para lá dum mar que não está chão,
 mas capitão não precisa de instrumentos de navegação,
 ele menino-moço-homem-feito nestas rotas de cabotagem:
-Ah, tanta saudade dos tempos caloiros de aprendizagem,
 tempos  de sonhar com horizontes longes e dilatados,
 de tanto sangue na guelra e tantos namoros salteados,
 tempos de viagens constantes àquelas águas do Paul,
 de noites perdidas a ver a lua cheia a  pratear o mar azul
 e a iluminar o perfil de garça do  nostálgico navio;
 Oh, longe vai  a vida solta de moço de coração vadio!...
 - Toninhas, para onde ides hoje apressadas, criaturas,
vós que pareceis sempre incansáveis de aventuras?
Capitão é despertado com esta ralação de marinheiro
quando os animais passam velozes desafiando o veleiro.
Mais logo nuvens negras se acastelam em jeito traiçoeiro
e vagas se agigantam ameaçadoras além a bombordo.
- Capitão, ouvi um presságio antes de entrar a bordo!
Exclama alguém entre o gemido sofrido das enxárcias
presas com a mestria precavida para  as circunstâncias.
- Qual história, qual carapuça, marinheiro de água doce,
onde já se viu ânimo de gente de mar que assim desfalece?!
Estamos abençoados por S. Vicente, Santa Luzia e S. Nicolau,
e desconfiar de  santo é coisa de grogue a pedir sova de pau!
Nunca se saberá se houve mau agoiro ou simples premonição
ou se apenas a má cara do tempo inspirou simples intuição;
a verdade é que uma vaga alterosa baldeia o convés inteiro
de um modo em que o mar nem sempre é useiro e vezeiro,
e o  marinheiro volta a falar no presságio ouvido em terra.
- Fechar escotilha e segurar leme que tempo está de guerra,
brada alto  capitão no meio do rugido do mar e do vento,
mas mar e vento mostram aos santos a feição do seu portento,
e a água já tudo inunda com a força líquida do seu contágio.
- Adé capitão, juro que ouvi mesmo um mau presságio...
Irado,  capitão grita seu impropério aos quatro ventos:
- Ó gente receosa, este navio foi abençoado por três santos!
Contudo o lobo-do-mar olha já de soslaio para os cantos,
como querendo esconjurar uma maligna fatalidade
já vidrada nos olhos cansados e rendidos à verdade.
Ordena ainda mais um bombeamento ao porão do navio,
com a água já a roçar a orla das vidas presas por um fio.
E o veleiro começa a afundar-se no mar do tormento,
Mas ainda à espera de socorro náutico a todo o momento,
quando alguém jura ouvir a voz celestial de Santa Luzia,
como algo que entra fundo no espírito e não é pura fantasia,
voz que  parecia emergir do oceano para tudo  acalmar,
a rogar ao Todo Poderoso pela sorte dos filhos do mar.
Hora de esperança renascida na fé finalmente devolvida?
Mas capitão já vê seu navio com olhos de despedida,
e quer também mergulhar no abismo sua alma sofrida:
- Ó perda irreparável, deixem-me ir no último  amplexo!
Mas vozes amigas lembram-lhe  que ainda há mais nexo
em seu amor à terra chã e nas promessas de vida por viver,
e há um instante em que tudo se reconcilia no fundo do seu ser.
Abstrai-se completamente da procela e do corrupio a bordo,
e chegam-lhe ecos de longe trazidos pelo vento  a estibordo,
qual  canto mavioso de sereia  embalando  seu espírito,
levando-o de regresso a imagens e sentimentos do pretérito,
um mundo de afectos que  procela não pode destroçar,
mais fiel  e mais duradouro  que o navio prestes a soçobrar.
- Adé capitão, gostamos do senhor como nosso pai de verdade...
É confissão de corações próximos numa hora de fatalidade.
 - Abandonar o navio! Ordena vibrante e já recomposto o capitão,
olhos postos além no socorro náutico, presença visível da salvação,
afinal, prova provada  que Santa Luzia foi mesmo ouvida
por Aquele que controla  mar e vento e o poder sobre a vida.
Capitão sabe como são sempre efémeras todas as glórias,
mas sabe que o seu navio navegará sempre nas suas memórias,
sagradas memórias como a fé que alumia a sua paixão,
doces memórias como a bondade que irradia do seu coração.


Adriano Miranda Lima
Tomar, 1 de Abril de 2003

2 comentários:

  1. Conheci o "Ildut" e Nho Junzim no Porto Grande e encontrei-os depois em Dakar para onde fazia viagens constantes.
    Era de longe o mais veloz até aparecer o iate "Novas de Alegria" que, mesmo assim, não atingiu os seus calcanhares.
    Depois foi o silêncio. Parti do Senegal e muitos anos depois soube que se tinha naufragado levando com ele a sua gente.
    A estória aqui relatada pelo Adriano, que nada tem a ver com a vida do navio, pode bem ser um episódio vivido pelo bravo capitão.
    Leio-a pela primeira vez essa aventura do mar com imenso agrado e - francamente - vou adoptà-la como "o fim do Ildut".

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  2. Bem, cabe-me um esclarecimento adicional. Um dos meus cunhados, médico de profissão, é filho do antigo capitão do Ildut, João Pedro Martins, e que só deixou de o ser quando o navio se afundou em viagem para S. Nicolau, seu destino predilecto. De facto, o poema baseia-se no acontecimento real do naufrágio e perda do navio. Mas não houve perdas humanas porque um navio de guerra saiu em socorro do Ildut. Tal como me contou o filho, o capitão recusou-se de facto a abandonar o navio, desejando ir com ele para o fundo do mar. A tripulação é que se acercou dele e o demoveu quase à força da ideia, lembrando-lhe o desgosto que ia dar à família. O drama é que ele fizera grande parte da sua vida ao leme desse navio e não via como conseguir sobreviver à perda e readaptar-se a outra vida. Na verdade, segundo o filho, ele nunca mais voltou a ser o mesmo, não resistindo à mágoa da perda do navio da sua vida. Não me lembro quando, mas faleceu não muitos anos depois. É com base no relato que fiz o poema, com o adorno ficcional que lhe emprestei. Eu tenho nos meus arquivos uma foto do Ildut e é pena que esteja neste momento fora de casa. Devo ainda acrescentar que o Ildut foi o primeiro navio local a acostar ao Cais Acostável no dia da inauguração. O filho do capitão João Pedro Martins tem uma foto do pai envergando a farda de cerimónia naquele memorável acontecimento. Fiquei admirado porque desconhecia que os capitães da marinhagem local usassem farda também. E olhem que ela era bonita. Bem, estas coisas do mar mexem comigo e com todos os mnines deSoncent dum modo geral.

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