domingo, 31 de março de 2013

[0405] 3.ª parte do mais recente texto de José Fortes Lopes

O Debate da Regionalização e a renovação política de Onésimo Silveira
3.ª Parte: Da Génese do Centralismo em Cabo Verde ao Debate da Regionalização

José Fortes Lopes
Como vimos precedentemente, há uma tentativa de capturar e desnaturar o debate da regionalização em favor de uma ala centralista e conservadora, que congrega uma agenda etnocentrista ou fundamentalista e uma outra de interesses políticos associados às redes de privilégios sociopolíticos e económicos do país, adversos a qualquer mudança ou reforma. Amilcar Cabral só poderia estar envergonhado com os ditos actuais herdeiros e seguidores.

O conceito de “Regionalização Administrativa” seria assim o denominador comum, a ‘reforma’ mínima aceitável aos olhos dos diferentes grupos que controlam o poder actualmente no país. Esta seria a ‘reforma na continuidade’ de um sistema já cansado e que governa o país há décadas, usando substancialmente variantes do mesmo e esgotado conceito de desenvolvimento, aquilo que é designado hoje eufemisticamente de Pensamento Único, e que em Cabo Verde toma a forma de um supra-partido único transversal à toda sociedade.

Pode dizer-se que o Onésimo Silveira é seguramente um gato político, porquanto já teve várias vidas políticas (costuma-se dizer que os gatos têm sete vidas). Estaremos perante o seu sétimo combate ou o último pulo do gato? A regionalização, uma das suas bandeiras, poderá ser uma excelente oportunidade para o velho nacionalista e político mostrar os seus dotes de combatente, deixando assim uma herança política, com a sua marca, à sua ilha natal e ao país. A ver vamos.

Teria sido interessante a participação conjunta neste debate, de outro velho nacionalista, Leitão da Graça, líder da extinta UPICV, um natural de Santiago, defensor da regionalização, e que acabou de declarar na Inforpress “A regionalização é uma coisa boa e, por isso, sempre fui a favor”, disse, lamentando que até ao momento este facto não tenha ainda acontecido em Cabo Verde. Na sua opinião, o PAIGC (hoje PAICV) sempre teve medo da regionalização. Hoje, gaba-se de ter escrito, em panfletos, apelando à autonomia das ilhas. Para Leitão da Graça, com a regionalização não significa que a unidade do país possa estar em causa.” (In Inforpress) (6).

Onésimo Silveira aparece, assim, quer queira quer não, como figura crucial neste debate, um ‘pivot’ fundamental entre as diferentes tendências e modelos em discussão e o provável interlocutor nas eventuais futuras negociações.

É assim que o Onésimo Silveira é apanhado (involuntariamente?) nesta ratoeira conceptual inventada pelos sectores conservadores do PAICV. Ao fazer questão de vincar, nos últimos artigos, a defesa de uma “Regionalização Administrativa”, em vez da “Regionalização” “tout court” (4), incorreu involuntariamente ou desnecessariamente em contradição com as teses que defendeu no colóquio/“atelier” sobre a Regionalização, de 9 a 11 de Abril de 2007, que serviu para o enterro do projecto. Este evento, segundo a então Ministra da Presidência do Concelho de Ministros, Reforma do Estado e Defesa, Cristina Fontes “visava consensualizar os conceitos em torno da matéria da descentralização, desconcentração, ou até mesmo regionalização”, que “o Governo tinha a sua posição, mas que estava aberto para ouvir as outras opiniões existentes; mas que defendia um “Estado suficiente", não havendo lugar para centralismos ou posições que ponham em causa o Estado unitário em Cabo Verde” (2). Adriano Miranda Lima (2) nos reporta, baseando-se em notícias então publicadas, que Onésimo Silveira ter-se-á mostrado favorável a uma «Região Política», indo assim na altura contra algumas correntes redutoras ou conservadoras do conceito de regionalização. Mais, Silveira, num conceito mais ambicioso, quiçá de ressonâncias futuristas, defendeu «a existência de regiões fora do território nacional, coincidentes com a geografia em que estão inseridas as comunidades emigradas», oferecendo assim um tema de estudo ao companheiro Luiz Silva, sobre o qual se vem debruçando entusiasticamente. Neste mesmo colóquio, José Maria Neves, como se estivesse exorcizando o fantasma de qualquer transformação orgânica no país que atente contra o poder dominante e total concentrado na ilha capital, afirmou aceitar unicamente o reforço do municipalismo. Apontou um conjunto de argumentos que, em sua opinião, desaconselhariam a criação de regiões políticas autónomas, a começar no facto de não haver enquadramento constitucional (2). Imaginem o nível do argumento! Será que os outros países (Marrocos, por exemplo) teriam já esse enquadramento quando realizaram tal reforma (5)? A resposta é obviamente não. Este dilema de causalidade é uma questão clássica, facilmente ultrapassável se houver vontade e determinação política. Na realidade, reformas desta natureza necessitam grandes homens ou homens de carácter (George Washington, James Madison, Charles de Gaulle, François Mitterrand, Nelson Mandela, Rei do Marrocos, etc), um conceito e um projecto novo, como aconteceram nos momentos cruciais e nos países em que elas foram levadas avante (4,5). Portanto, não brinquemos com conceitos e não tentemos separar artificialmente a regionalização em duas componentes, a administrativa e a política, pois estaremos a incorrer em pura manipulação conceptual, com o único intuito de atrair ‘eleitorado’ e enganar os incautos. Pois se ambos os prós e os contra da regionalização, que defendem processos conceptualmente diferentes, ‘desatarem’ a chamar a reforma pelo mesmo nome, regionalização administrativa, no fim, o povo, que queremos esclarecer cabalmente, ficará refém de uma ambiguidade que produzirá um efeito inverso, e a confusão política nesta matéria será total e instalada para muito tempo. Por esta e outras razões é que apontei a inoportunidade da realização, no presente contexto, de um referendo sobre uma matéria tão séria e sensível. Como os franceses dizem “Il faut appeler un chat, un chat”, ou seja, falemos de regionalização ‘tout court’ (4, 5). Isto leva-nos a apelar a realização de estudos consistentes, debates e campanhas diversos para esclarecer as pessoas e separar as águas. Mas não há meio de o PM declarar oficialmente a abertura dos trabalhos e do debate, todo convencido de que anda a ganhar tempo para que tudo acabe em águas de bacalhau. Ou não terá ele coragem nem estofo para liderar este processo!?

Mas foi todavia na Workshop sobre Reforma do Estado, Justiça e Segurança realizada no âmbito da Conferência Nacional do PAICV de 28 a 3 de Setembro 2012, que uma ala do PAICV iniciou uma ofensiva ideológica contra a regionalização, que culminou no recente Conselho de Ministros no Mindelo. O PM assinalou como inaceitável qualquer veleidade política à reforma, apresentando ao país o modelo pré-cozinhado, chamado de Regionalização Administrativa, correspondendo, na visão José Maria Neves e dos sectores mais conservadores do PAICV, simplesmente, ao reforço do municipalismo, ou seja, aquilo que qualificam de “supra-municipalismo”, terminologia bastante ambígua para este debate, e que também Onésimo Silveira resolveu, aparentemente, adoptar.

Mesmo assim, a pobreza do argumentário dos que estão contra a regionalização é aflitiva e resume-se, quando não se recorre a ataques baixos e de carácter pessoal, a afirmações e generalidades de La Palisse, do tipo: “A maioria das pessoas que têm intervindo dizem claramente que a regionalização política é um disparate em Cabo Verde, por ser um país de apenas cerca de 4.033 quilómetros quadrados e menos de meio milhão de habitantes”. Como refere Adriano Miranda Lima (2), “os responsáveis do Governo recorrem normalmente a um discurso circular, feito de generalidades e lugares comuns, sempre que têm de pronunciar-se sobre o assunto, enquanto o centralismo ostenta uma dureza de pedra e cal, o que demonstra que a política, não raras vezes, pode ser a mais perfeita arte de dissimulação. Mas como desde o colóquio realizado na Praia o assunto parece ter arrefecido nos meios oficiais, ou adiado para as calendas gregas, é caso para imaginar que José Maria Neves teria aspergido água benta sobre o retábulo do colóquio, para exorcizar o fantasma de qualquer transformação orgânica no país que atente contra o poder dominante e total concentrado na ilha capital”. E “A verdade é que não se vê uma firme vontade política, da parte do poder, de reformar o modelo organizativo do país, quando as actuais circunstâncias nacionais e internacionais aconselham a repensar o presente” (3). Na realidade, do que JMN e os sectores conservadores da sociedade cabo-verdiana não querem ouvir falar é de reformas do sistema económico e político do país, a que uma verdadeira regionalização forçosamente obrigará, pois como facilmente se compreenderá, ela vai mexer com interesses instalados, das elites, dos grupos de pressão, dos agentes políticos e económicos, todos confortavelmente refastelados na poltrona da centralização. Agarram ao centralismo como um cão ao seu osso. Portanto para eles nada de protagonismo para S. Vicente e outras ilhas. Na realidade, muitos outros que não partilham desta visão centralista estão convencidos que o centralismo é a fonte actual do poder e a mãe de muitos dos problemas actuais de Cabo Verde.

JMN tem-se, portanto, desdobrado em esforços para diluir ou esvaziar o conteúdo do debate sobre a regionalização, após ter prometido a sua realização e a abertura de um Livro Branco. É por estes sinais inquietantes que o leitor comum pode confundir-se com essa insuficiente explicitação do pensamento do Onésimo Silveira, e indo mesmo ao extremo de nelas poder descortinar, quiçá injustamente, uma tentativa de aproximação conciliatória às dúbias intenções do governo, o que, a confirmar-se, voltaria a ser altamente comprometedor da credibilidade daquele político mindelense. Por conseguinte, é de toda a conveniência que o Onésimo Silveira evite esta similitude expressiva entre ele e o JMN em matéria de regionalização, ou que afaste as eventuais suspeitas da existência de uma aliança objectiva ou de um acordo implícito sobre o modelo de regionalização minimalista ou de compromisso, antes de qualquer debate, o que a ser verdade frustraria as pessoas que deram o corpo a este combate de cidadania. Todavia, desenganem-se os opositores se pensam que exista alguma divergência de fundo sobre a regionalização entre a maior parte dos regionalistas, incluindo Onésimo Silveira. Inclusivamente, até se pode conceber que determinados líderes possam vir a concluir que afinal determinado modelo que tinham defendido já não será o mais adaptável ao nosso circunstancialismo, mudando, por isso, de opinião, mas sem abdicar da sua crença na irreversibilidade da reforma. Não devemos ser dogmáticos nem sectários, pois costuma-se dizer que só os burros é que não mudam de opinião, pelo que estaremos abertos ao debate e a eventuais futuros compromissos, desde que haja honestidade intelectual na posição das pessoas.

Na realidade, defender, a priori, uma regionalização minimalista limitada a um formato meramente administrativo, que sintetizasse a linha dos actuais detractores da reforma, tentando assim definir de antemão os contornos do futuro debate, que deveria ser alargado e participativo, constitui uma tentativa de condicioná-lo e de antecipar as conclusões do mesmo, muito ao gosto dos partidos do poder de matriz centralista e autoritária. Esta atitude não facilitará a criação de uma plataforma de entendimento consensual sobre o modelo de descentralização e regionalização mais adequado à realidade cabo-verdiana, para a elaboração de propostas concretas sobre o futuro político, administrativo e económico de Cabo Verde. Pois, embora o aval de experiências bem-sucedidas no Mundo, não existe uma doutrina uniforme sobre a descentralização, nem verdades axiomáticas sobre esta matéria, muito menos teorias dogmáticas, comprovado está que o estudo e o planeamento de uma descentralização/regionalização envolvem uma série de variáveis, que são pertença da substância complexa e multiforme do problema, e que elas são do âmbito político, geográfico, demográfico, económico e histórico-cultural (3).

Sugiro, assim, ao Onésimo que clarifique melhor o seu pensamento, porque, como se costuma dizer, à mulher de César não basta ser séria, tem de parecer ser séria. Isto quer dizer apenas que pode este político estar a incorrer num risco involuntário e absolutamente desnecessário, que levará outros a murmurar: “Naquele país, falar de regionalização (política e administrativa) é quase um crime de lesa-pátria ou um acto de desobediência cívica à doutrina centralista do PAICV, partido que muitas vezes sente-se dono e polícia da consciência do país”.

Em todo o caso, e dando-lhe o benefício da dúvida, quero crer que, contrariamente ao JNM, aquilo que Onésimo propugna para Cabo Verde, em geral, e a ilha de S. Vicente, em particular, é a regionalização no seu significado conceptual mais amplo e mais completo: eleição de órgãos representativos e governativos próprios e certo grau de autonomia financeira e de decisão política. De resto, tem sido por demais evidente em todos os artigos já publicados sobre regionalização (Arsénio de Pina, Adriano Miranda Lima, António Pascoal Santos, Luiz Silva, da minha própria pessoa, e vários outros jovens autores como Aldirley Gomes) e da posição já expressa por vários políticos locais e nacionais, que o conceito envolve um carácter político e simultaneamente administrativo bem como uma autonomia que, citando Adriano Miranda Lima (1), “corresponderá à amplitude que for conferida à transferência de autoridade político-administrativa, que quanto maior é, mais efectiva torna a autonomia. Uma autonomia configura responsabilidades político-administrativas próprias no espaço jurisdicional de um poder local e circunscrita a certas áreas de governação, que excluem normalmente as que têm uma relação directa com a soberania e são da estrita dependência do governo central.”

Voltando ao princípio desta narrativa (1ª parte), vimos que a antiga administração colonial, já na sua fase final, pensou num figurino administrativo diferente para o arquipélago de Cabo Verde e chegou a indigitar um governador para o Grupo Barlavento, o que revela já na altura uma correcta percepção das consequências político-administrativas da descontinuidade territorial da colónia e da necessidade de uma resposta adequada e mais próxima dos interesses daquelas ilhas. O companheiro e conterrâneo Adriano Miranda Lima, que foi vizinho em Tomar do governador então digitado, Dr. Jerónimo Graça (falecido em 2011), confirma que ouviu directamente da sua boca o facto aqui referido.

É verdade que tal solução não corresponderia propriamente ao que hoje defendemos actualmente para o país – a regionalização – mas constituía certamente o primeiro lance de um olhar realista para os problemas do arquipélago. Na realidade, a iniciativa do governo do MPD nos anos 90 seguiu, em certa medida, a lógica subjacente ao projecto da administração colonial, e se não fosse abortada por questões de ordem ideológica, estaríamos hoje a desfrutar em todo o arquipélago do seu impacto socioeconómico e quiçá político. Todavia, na presente conjuntura, essa regionalização minimalista já está fora do contexto, ultrapassada no seu ‘timing’, na medida em que como referi precedentemente, a sua concretização actual só serviria para matar a ideia e o conteúdo da regionalização, servindo exclusivamente os interesses de uma oligarquia política e económica bem instalada no conforto do poder, que tudo fará para abafar qualquer ‘radiografia’ do país, debate e tratamento dos problemas candentes da sociedade cabo-verdiana contemporânea. Ontem como hoje, a solução dos problemas de Cabo Verde requer o equilíbrio entre o factor geoeconómico e o político “tout court”, o primado da racionalidade sobre a obtusidade mental. Nenhuma decisão sobre a regionalização deverá ser tomada sem uma ampla discussão envolvendo os principais actores e a sociedade civil. Tão pouco será possível introduzir esta reforma e as que vêm anexadas, sem as preceder de um debate sobre o acervo de mudanças profundas e necessárias que o país reclama. Pois a regionalização, mormente a minimalista, sendo parte da solução, não será de certeza a panaceia para os muitos problemas graves e crónicos que já assolam o país. (FIM)

PS: A experiência de regionalização em curso em Marrocos (5), da iniciativa e impulsionada pelo próprio rei (que não pode ser acusado de querer dividir o seu país), e já em fase avançada de implementação, prova ser uma reforma natural e que merece a nossa atenção, desmonta as inverdades e fantasmas que, infelizmente, alguns querem construir em torno da problemática. Esta reforma é já prova de maturidade política de um país como o Marrocos.

(1) LIMA, Adriano, “Descentralização Político-Administrativa (Entre a teoria e a realidade prática) – 1ª Parte”, Liberal Online, Fevereiro de 2012
(2) LIMA, Adriano, A Regionalização em Cabo Verde: Recentrar o tema na agenda Nacional. Liberal Online, Fevereiro de 2012
(3) Fortes Lopes, José, “Reacção do Movimento para a Regionalização de Cabo Verde aos recentes desenvolvimentos políticos em Cabo Verde”. Notícias do Norte & Liberal Online, de Outubro de 2012.
(4) La Régionalisation, une histoire de plus d’un demi-siècle. Association des Régions de France (A.R.F.) http://www.arf.asso.fr/histoire-du-fait-regional.
(5) La Commission Consultative de la Régionalisation (CCR), Maroc:
-http://www.regionalisationavancee.ma/PageFR.aspx?id=5;
-http://www.diplomatie.ma/Regionalisationavancee/tabid/220/language/fr-FR/Default.aspx;
-http://www.libe.ma/La-question-de-la-regionalisation-au-Maroc_a9519.html.
(6) http://noticias.sapo.cv/vida/noticias/artigo/1307828.html#showcomment

2 comentários:

  1. Mais um grande artigo do patricio José Fortes Lopes sobre tema que necessita atenção de todos os que amam a nossa terra com ausencia de sentimentos partidàrios ou bairristas. No estado em que se encontram as coisas (mundialmente)e no momento dificil que atravessa Cabo Verde, fechar os olhos ou fazer de avestruz é insensato e irresponsàvel.
    Força, José !!!

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  2. Como já tenho dito, é importante manter aceso o interesse por este tema e nisso o José Lopes não deixa os seus créditos por mãos alheias. Fá-lo com conhecimento, com convicção e com rara determinação. Quanto ao Onésimo, estou convencido de que ele não tardará a desfazer o equívoco que pode nascer da designação "regionalização administrativa", que ele utilizou em seus artigos, pois sei que o seu pensamento converge com o nosso e é no sentido de uma regionalização com reais implicações políticas.

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