segunda-feira, 23 de setembro de 2013

[0568] "Alguns aspectos da Regionalização em Cabo Verde", por Arsénio de Pina

Texto inédito

Arsénio de Pina
No encontro promovido pelo “Grupo de Reflexão para a Regionalização de Cabo Verde”, os pratos fortes serão o balanço das actividades do Grupo e perspectivas futuras, a cargo de João Lima, o custo da regionalização, por José Maria Brito Almeida, e eu limitar-me-ei a ventilar alguns aspectos da mesma, sugerindo ainda aos ouvintes a leitura de artigos de José Fortes Lopes, Luiz Silva, Adriano Miranda Lima, Onésimo Silveira, Ireneu Gomes, no seu segundo livro sobre Psicopatologia da Miséria, a tese de doutoramento de Eder Marcos de Oliveira, o artigo de Hirondina Martins publicado em A Semana, o recente livro de João do Rosário, Cabo Verde, Perspectiva e Realidade, entre outras publicações versando o assunto.

A Regionalização do país - uma modalidade de descentralização política, administrativa, financeira, social e cultural – facilitaria e promoveria a responsabilização dos quadros dirigentes, estimulando simultaneamente os cidadãos a assumirem em pleno a cidadania, a participar activamente na gestão da coisa pública, ganhando consciência e lucidez sobre os seus desígnios e objectivos, a valorizar as vantagens específicas de cada ilha, em vez de as menosprezar ou sufocar, como vem acontecendo, por exemplo, com S. Vicente, quando, entre 1920 e 1930, esta nossa ilha era a mais avançada, fornecendo dois terços do rendimento total do arquipélago, graças às suas actividades marítimas.
A estratégia da regionalização é apartidária, brotada da sociedade civil. Por mais que se espreite, não se encontrará nenhum fumo partidário, nem rabo-de-gato politiqueiro. Nela podem participar todas as pessoas de boa vontade com ideias saudáveis e iniciativas viáveis, pessoas corajosas e determinadas, e mesmo políticos, desde que estes deixem a militância partidária e a má política em casa. Na nossa perspectiva, não é estratégia que possa ser recuperada para interesses partidários e para catar votos, mas pode ser bloqueada se não houver boa-fé do Governo.

Herdámos da administração portuguesa a centralização excessiva, sendo essa mazela mais uma razão para desenvolvermos municípios mais fortes e instituições regionais descentralizadas a que o Poder Central delegará competências e poderes, consagrando o princípio da solidariedade e não limitar-se a uma simples redistribuição das competências entre o poder central e as regiões. O exercício dos poderes delegados será, como não podia deixar de ser, sob controlo e fiscalização do Poder Central quanto ao cabal cumprimento desses poderes, sem outras interferências.

A regionalização tem demonstrado, nos países onde foi instituída, ser um instrumento poderoso que favorece a democracia graças à participação activa dos cidadãos. Em democracia é essencial a liberdade e igualdade perante a lei, para ser possível a participação dos menos favorecidos, face a minorias natural ou artificialmente privilegiadas; a regionalização, do seu lado, aproxima os serviços públicos das populações, diminui a burocracia e a corrupção e legitima o poder através do voto popular, diminuindo a fraude eleitoral através do aumento de postos de trabalho, consequentemente, diminuição do número de desempregados, mais sujeitos a serem comprados por partidos políticos. É incontestável, e disso temos longa experiência, que as possibilidades de participação são muito maiores quando existem governantes eleitos por mérito na competência e na experiência do que quando se verifica a nomeação por parte do Governo ou por favorecimento de militantes partidários.

O instinto político de descentralização e de autonomia manifesta-se sob múltiplas formas, como um protesto contra a insensibilidade do poder central e uma vitória dos interesses e energias locais contra a média uniforme, impotente e artificial do centralismo. Nelas podem manifestar-se livremente e afirmar o espírito inventivo, democrático e autonómico das populações. As liberdades municipais e iniciativas locais dão às populações fisionomia e vida próprias impossíveis na centralização comandada à distância, esterilizadora, lenta, monocórdica e pouco sensível às questões locais, com a vantagem acrescida de motivar as populações das ilhas a não migrarem, a emigrar menos, a permanecerem aí, em actividades reprodutivas, transaccionáveis, captando fundos dos seus filhos na diáspora que investem para o desenvolvimento da sua ilha através de indústrias ligeiras, do turismo, artesanato, agro-negócio, fabrico, por exemplo, mil e uma coisas que importamos, como telhas e blocos em argila, aproveitamento da riqueza mineral (pozolana, gesso, pedra basáltica e colorida e até mármore, na ilha do Maio), engarrafamento de água mineral (Brava, Fogo, Santiago, Santo Antão), exploração de termas medicinais (por exemplo, no Barril, no Tarrafal de S. Nicolau, de que fiz, há anos, uma proposta fundamentada, utilizando as areias quentes medicinais associadas à água mínero-medicinal do Torno ou de Mané Bau, indicadas tanto para o tratamento de reumatismo como de doenças do foro digestivo).

É bom de ver que os partidos políticos e governos, sejam quais forem os seus ideais e interesses, ganham sempre com a centralização, pelo que dificilmente se separam dela. A centralização do poder é o grande meio de este o conservar e controlar de perto, porque concentrado num local na sua omnipotência burocrática com o favorecimento e o apoio de uma pequena elite exploradora à custa dos esforços e do sofrimento da maioria. Não tenhamos dúvidas nem ilusões: esperar a regionalização por iniciativa e decisão de partidos políticos e governos é quase como garantir chuva, em Cabo Verde, no mês de Outubro. Deverá ser a sociedade civil e os jovens a lutar por isso com argumentos válidos até os convencer a considera-las e a adoptar, até porque a juventude, no seu todo mas particularmente a qualificada desempregada, já não acredita no estafado centralismo do poder e ambiciona uma alternativa que lhe abra novas oportunidades.

Cremos bem que as regiões com descentralização administrativa, financeira, política, social e cultural podem ser um instrumento de unidade e de solidariedade nacional, e não de divisão, como alguns temem e transformam em gongon, se for correctamente realizada, de modo a que as populações sintam e se convençam de que as regiões mais atrasadas ou negligenciadas passam a ter autonomia e a dispor de mais recursos do que até agora; como aceitar que certos nababos de Praia, embora esta ilha albergue mais de 50% da população do país, sejam os maiores beneficiários dos investimentos para o desenvolvimento destinado ao país, quando somos nove ilhas habitadas dispersas? Somente no centralismo do poder é que tal anomalia é possível. A descentralização funciona como motores potentes do desenvolvimento e de criação de actividades ao nível local.

O nosso Movimento para a Regionalização, Descentralização e Autonomia de Cabo Verde fez, há ano e meio, uma proposta ao Governo para a constituição de uma comissão de estudo contemplando algumas questões que ventilamos neste encontro, comissão incluindo todos os parceiros sociais, económicos e políticos, a fim de se chegar a um consenso sobre a regionalização, descentralização e autonomia de CV, após o estudo e debate de diferentes experiências de regionalização no mundo (Marrocos, Áustria, Bélgica, Holanda, Dinamarca, etc.), e ainda estamos à espera de resposta. Insensibilidade central às propostas periféricas?

Que haja um “Estatuto Especial para a Praia”, como capital do país, ninguém de boa-fé pode, nem deve ser contra, mas dentro de um contexto geral de descentralização para todo o país. Somente limitado à Praia é que é de estranhar, por o país ser uno e indivisível. A Praia, como cabeça do país, poderá merecer, por isso, um penteado particular, mas se o corpo do país, portanto, as outras ilhas e certos concelhos de Santiago, estiverem cheias de sarna, tinha, cocirinha e apostema, a cabeça praiense estiolar-se-ia.

Sem o conhecimento e discussão aprofundada, ninguém estará em condições de afirmar categoricamente que a regionalização nos convém ou não. As verdades irrefutáveis, somente em religião, tanto nos dogmas como na infalibilidade papal, mas esta limitada a matéria de fé. A Política e a Administração são ciência, e esta contenta-se com aproximações da verdade após estudo, discussão aturada e experimentação. Afirmar a inexistência de meios para a regionalização parece-nos um tanto arriscado, talvez um lapsus linguae, ou, pelo menos, imprudente. À pergunta do nosso Primeiro-Ministro de “quem irá pagar isso”, para negar a sua viabilidade, a única resposta será uma série de outras perguntas: entre outras, quem tem pago a pesada estrutura estatal que vem gerindo o nosso país? Veremos, como nos explicará o companheiro da jornada Brito Almeida, que até se poupará com a regionalização, muito mais eficiente do que o estafado centralismo em que temos vivido e insistimos em continuar botando-lhe uma ligeira maquilhagem.

A abundância de leis, de normas, posturas camarárias, estas raras vezes aplicadas, do nosso sistema de governação, é um regalo para burocratas, mormente para o funcionário menor que se agarra à norma ou à lei e tem dificuldade em representar um papel impessoal. E isso dá origem a uma das burocracias desesperadamente alapadas à letra da lei, sem tentar compreender-lhe o espírito, e criadora de oportunidades para a corrupção. Qualquer caso banal é atirado para o superior hierárquico e isso dificulta e afugenta os investidores privados nacionais, sobretudo os da diáspora e estrangeiros não habituados a tamanhas dificuldades e perdas de tempo. Conclui-se, portanto, haver urgência na Reforma Administrativa.

O Estado deve exercer as competências que as instâncias descentralizadas e as abaixo delas não possam exercer melhor do que ele, abandonando o autoritarismo concentrado e pessoalizado ainda vigente.

Esperamos que o Governo queira escutar as vozes dos cidadãos, da sociedade civil, porque ninguém deve pedir por favor aquilo que lhe pertence por direito. Há que combater e acabar com a tendência de as pessoas que deveriam ser ouvidas e respeitadas pela sua competência, experiência, isenção, provas dadas e rectidão de caracter, serem marginalizadas pelo poder político quando não são militantes do partido no poder. Afinal, o Estado mais não é do que uma máquina que se destina a fornecer-nos os serviços que nós, cidadãos não militantes e militantes, reputamos de essenciais. Se não funciona, ou se funciona mal, é porque algo falhou na forma como escolhemos os dirigentes, ou estes se inebriaram com o usufruto do poder, e temos todo o direito e poder de modificar essa forma de escolha e de decisão.

Um país onde a inteligência é um capital quase inútil e o único capital deveras produtivo e utilizado é a falta de escrúpulos e de ética, não tem grandes hipóteses de progredir. Não queiramos ser nem tolerar isso.

Há gente, geralmente das cúpulas governamentais, que advoga – e muito bem – a desestatização das nossas cabeças, isto é, que não se espere que tudo venha do Estado, dos Governos. Esquecem-se, no entanto, de que a culpa tem sido deles, não dos cidadãos, por ter havido controlo e condicionamento rígido das iniciativas privadas, o que levou à criação de empresários conformados, tímidos e abúlicos, de um lado, e de oportunistas e mafiosos, de outro, não permitindo a formação, como expliquei noutro texto, de uma classe empresarial forte e independente capaz de investir na promoção e criação de indústrias. Grande parte desta classe tem-se limitado a viver da importação de bens, que já devíamos estar a produzir localmente, e da rabidância, sem correr nenhuns riscos. Diga-se a verdade inteira: há impostos exorbitantes sobre os produtos nacionais e matérias-primas importadas, herdados do tempo colonial, para proteger os produtos vindos de Portugal e para frenar a criação de indústrias nas colónias, impostos que ainda vigoram, e facilidades quanto a produtos importados que beneficiam de subsídios da EU. Até a OMC recomendou legislação nacional para proteger a produção local, a qual nunca foi feita. Não irei estender-me neste campo, de que se ocupará um dos palestrantes e vem documentado no livro de João do Rosário.

A regionalização é uma forma de descentralização, como o são o reforço do poder dos municípios e das freguesias ou a transferência de poder para as associações públicas, como as ordens profissionais, ou para instituições particulares não-governamentais do tipo da Adeco, ONDS, ADAD, Amigos da Natureza e outras do género, de solidariedade e defesa do cidadão contribuinte, consumidor e de defesa do meio ambiente, cujos dirigentes são eleitos, não nomeados pelo Governo.

Não me detenho na autonomia, tão caluniada por alguns. Ela significa tão simplesmente mais poderes para gerir a receita, mas também poderes para a cobrar a nível regional e municipal. É um princípio fundamental de maior responsabilidade: quem gasta, cobra, o mesmo é dizer, maior autonomia com maior responsabilidade para se obterem resultados mais adequados e duráveis em tempo útil sem ter de esperar meses pelo deferimento central.

Opor-se, ou apresentar empecilhos à regionalização por poder ser uma ameaça à unidade nacional, é uma grande patranha que não tem pés para marchar e nos recorda uma das figuras do quotidiano utilitário do Prof. João Manuel Varela – os matadores do burrinho do bispo – pessoas que se empenham em matar estruturas que não fazem mal a ninguém, nem à sociedade civil, nem às instituições do Estado, e, até são, pelo contrário, uteis, sem falar nos passadores de pau que empregam o seu tempo a enganar o próximo e são, manifestamente malignos, estando em intensa proliferação.

As regiões devem ocupar-se de decisões que ultrapassam os municípios, isto é, que não podem ser resolvidas a esse nível sem egoísmos dos respectivos municípios: questões de planeamento regional, gestão de incentivos, definição de prioridades de investimento público, entre outras. 

Sendo a democracia mais uma prática diária do que um regime, forçoso é presumir-se poder haver práticas ruins sob a capa de democracia. É o que, infelizmente há mais nos tempos que correm, e tanto mais quanto mais fraca e resignada for a sociedade civil e a tradição de esta intervir para limitar e corrigir o poder do Estado. Certamente, organizações da sociedade civil independentes são incómodas para muitos governos parasitados por predadores usufruindo das benesses do centralismo.

Como continuamos aguardando que o Governo nos oiça e dê andamento à nossa solicitação, e de altas individualidades nacionais, de criar uma comissão para o estudo da viabilidade da adopção da regionalização em Cabo Verde, termino com o mesmo conselho de um artigo anterior dirigido ao Governo:

Caros governantes. Há que respeitar um povo que contornou precipícios terríveis, sinuosos e escorregadios, onde só transita, sem risco de cair, o pé bifurcado da cabra. Ele, o povo das ilhas, excluindo certos privilegiados da Praia, aí está, mirando aqueles que prometeram melhorar os seus caminhos. Queremos, nós das outras ilhas, do interior de Santiago e os da Praia deixados por conta, caminhar convosco do poder central, de mãos dadas, em confiança, sem receio que nos pinchem pela ribanceira abaixo.

S. Vicente, 7 de Agosto de 2013
 Arsénio Fermino de Pina 
(Pediatra e sócio honorário da ADECO)

1 comentário:

  1. O meu comentário é lapidar na medida em que já discursei muito sobre a problemática que o companheiro Arsénio apresenta aqui de maneira eloquente. Excelente artigo de opinião sobre uma questão que deve ser divulgado e discutido. Estou convencido que acabaremos um dia por dizer, pelo menos sobre a Regionalização, 'Enfim ja's Cdi'

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