terça-feira, 29 de outubro de 2013

[0609] Náufragos (não confundir com naufrágios) da II Guerra Mundial: cabo-verdianos e de outras nacionalidades

Tínhamos prometido no post anterior (que afinal não vamos apagar, ao contrário do que ali dissemos) que iríamos publicar neste materiais sobre náufragos cabo-verdianos e de outras nacionalidades resultantes de ataques de U-boats durante a II Guerra Mundial. Contudo, a informação que temos vindo a observar durante os dias de ontem e de hoje tem-se revelado de tal modo interessante que resolvemos escrever artigo mais desenvolvido com base na mesma - que reservamos para publicação em breve do jornal Terra Nova, de São Vicente (e depois no blogue Esquina do Tempo e por fim no Pd'B). Por isso, agora só aqui deixamos uma amostra para suscitar água na boca dos amantes das coisas navais e cabo-verdianas.

A mais antiga referência que conhecemos a náufragos cabo-verdianos por razão de afundamentos durante a II Guerra Mundial é de meados de Março de 1941, quando 18 portugueses, ex-tripulantes de navios gregos torpedeados, chegaram finalmente a Lisboa. Os barcos em causa, o Aenos, o Yoanis Embericos, o Alexandrus e o Nicolas Fitinis haviam sido afundados meses antes, nas costas da Irlanda por U-boats, os temidos submarinos de caça alemães. Nas suas equipagens, constituídas por gente de diferentes nacionalidades, havia 24 portugueses, dos quais tinham morrido cinco e um ficado ferido. Entre os falecidos, dois eram os cabo-verdianos, Manuel e Agostinho, pertencentes ao primeiro cargueiro a ser metido a pique, o Aenos, de 3554 toneladas, abatido a 17 de Outubro de 1940.

O 28 de Maio - Colecção de Valdemar Pereira
A 20 de Maio, o ministério da Marinha de Portugal recebia, proveniente da sua estação radiotelegráfica, a comunicação de que dois navios britânicos haviam sido bombardeados de madrugada, 200 milhas a leste da ilha de São Vicente. A burocracia habitual obrigou a participar o caso ao ministério das Colónias que por sua vez accionou os serviços do vapor 28 de Maio que fazia serviço de cabotagem no arquipélago cabo-verdiano, a fim de que este procedesse ao salvamento de possíveis náufragos. A tripulação do Clan Macnab  saltara de imediato para as baleeiras de salvação mas do outro navio, o Mandalay, nada se sabia.

[0608] Próximo post com submarinos alemães, bombardeamentos, naufrágios, marinheiros salvos e outros não... e, até, com o "Tarrafal" e o "28 de Maio"

Anos 40 do século XX, no mar de Cabo Verde o perigo espreita. Os u-boat alemães rasgam as águas das ilhas e fazem devastadores estragos nas marinhas estrangeiras, preferentemente a inglesa. S. Vicente e Santo Antão, entre outros, são refúgios que irão recolher náufragos salvos das águas do Atlântico. E imagine-se, no caso que estamos a estudar, à custa do velho vapor "Tarrafal"...

Como percebe quem vem com frequência ao Pd'B, estes posts dão bastante trabalho de pesquisa e o que anunciamos é um deles. Enquanto a coisa não está feita e ainda recolhemos alguns beefs em perigo de afogamento, pode ir dando a sua opinião nos posts anteriores...

Neste caso particular, não vale a pena fazer comentários, porque se trata apenas de um anúncio que será apagado quando o citado post der entrada.

domingo, 27 de outubro de 2013

[0607] Fomes em Cabo Verde e ajuda das gentes da Metrópole (Portugal europeu)

É dado como assente que a colónia de Cabo Verde, mais que deliberadamente maltratada pelo Governo da antiga mãe-pátria foi sobretudo muitas vezes esquecida por ele. De facto, nos momentos graves, nem sempre surgiram os meios necessários para acudir ao território - por exemplo à catátrofe da fome, a mais trágica, sempre associada às secas - que o Governo central se "esquecia" de lhe fornecer. Mas uma coisa são os governos e outra são os povos. E Cabo Verde, na hora da verdade, sempre contou com os seus filhos da América e de outros locais de emigração e do povo português europeu, despertado sempre que possível pelas notícias que a imprensa mais destemida ia conseguindo fazer passar, em censura monárquica, republicana ou estadonovense...

Disso é exemplo curiosíssimo o texto que hoje publicamos na totalidade. Surgiu ele no jornal coimbrão Resistência, de 9 de Agosto de 1903, que refere os ingentes apelos de Loff de Vasconcelos (ver AQUI), maiense falecido em São Vicente, desassombrado homem da imprensa e nativista convicto. A descrição é dramática em alguns aspectos e nela se vê bem como diferia o tratamento dado aos cabo-verdianos pelo Governo do que o povo português agenciava para os seus irmãos das ilhas. E com associações comerciais em campo e barcos a fazerem transporte gratuito dos géneros. Em ocasião oportuna veremos que o mesmo se passava do lado de lá do Atlântico, com os cabo-verdianos e açorianos da América a darem o seu contributo para a amenização do flagelo que ciclicamente fustigava as gentes pobres do arquipélago.


sábado, 26 de outubro de 2013

[0606] A Missão de Combate de Endemias do Dr. Manuel Torquato Viana de Meira

A propósito do post anterior, o nosso colaborador Zito Azevedo lembrou a figura do Dr. Meira. Como se pode ver por mais um documento do nosso arquivo, o cientista, de seu nome completo Manuel Torquato Viana de Meira, esteve de facto em Cabo Verde a chefiar a Missão de Combate de Endemias (com mais uma chegada em Janeiro de 1965). Lembro-me do nome (que não da pessoa), pois estava em São Vicente na altura e dele ouvi falar lá em casa. E descobri agora, por via deste post, que ele teve como adjunto o médico-escritor Teixeira de Sousa em missão anterior a esta, nos idos de 1957 ou antes. O que significa, no fim de contas, que a Casa Gaspar passou a vender menos Flit e a Farmácia do Leão e o Nena menos creme para as picadas de mosquitos, a partir dessa altura...



sexta-feira, 25 de outubro de 2013

[0605] Missão de estudo, económica e científica, parte de Lisboa para Cabo Verde... em Novembro de 1959

Este post é dedicado ao nosso colaborador José Fortes Lopes. Ele que explique os motivos da "honra" que lhe concedemos... De qualquer modo, AQUI vai uma ajuda para a compreensão da coisa, a partir do nome do Dr. Fernando Correia da Costa.


O paquete "Vera Cruz"

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

[0603] Filme raríssimo de um barco da carreira de Cabo Verde-EUA: o mesmo "Coriolanus" do post 601


Veja o Coriolanus a navegar, num curto mas interessante filme sonoro, AQUI. Se ainda não o fez, leia a nossa "Crónica do Norte Atlântico" sobre este veleiro, no post 601.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

[0602] Música de Cabo Verde em Lisboa, há mais de meio século...

(Clique nos links) Aqui está mais uma pérola cabo-verdiana, recentemente encontrada pelo Pd'B, nas suas contínuas excavações. A coisa passa-se no centro de  Lisboa, no Hotel Embaixador (Avenida Duque de Loulé), em Abril de 1960, quando ali cantavam e encantavam a explosiva Silvana Blasi (Ancona, Itália, 1931) e o saudoso Fernando Quejas (Praia, 1922 - Lisboa, 2005). Espectáculo para maiores de 17 anos, no chamado "Terraço das Estrelas" de um hotel de luxo de Lisboa, muito antes da era Cesária (e nesta época, Bana ainda estava a seguir para Dacar e depois para Paris), com um dos maiores cantores das ilhas. O hotel ainda existe e foi renovado em anos recentes, a Blasi parece que está viva. Só o cantor, infelizmente, nos deixou.




sábado, 19 de outubro de 2013

[0601] Mais uma "Crónica do Norte Atlântico", desta feita sobre a barca "Coriolanus"


Crónica publicada nos meses de Julho e Setembro.2013
 
A BARCA "CORIOLANUS" FASCINANTE E AZARADO NAVIO DA CARREIRA DE CABO VERDE

Com casco de ferro, três mastros e cerca de 1000 toneladas brutas, o "Coriolanus" era um veleiro elegante, extremamente rápido [1] e dedicava-se ao transporte de mercadorias e passageiros. O barco teve longa história de 60 anos e passou por várias bandeiras e donos, entre os quais alguns portugueses, até que em Agosto de 1936 chegou a um sucateiro em Fall River, Massachusetts, para abate. Lançado à água em Maio de 1876 nos estaleiros escoceses de Archibald McMillan & Son, em Dumbarton, passou em 1891 para mãos alemãs e em 1903 arvorava pavilhão norueguês (sob o nome "Lina") para pouco depois voltar a ser britânico e logo a seguir americano (como "Tiburon"). Só em 1921, já com 45 anos de mar, tem proprietário português que o compra por 7525 dólares e o rebaptiza de "Eugénia Emília". Vejamos então o seu historial lusitano, a partir desse momento.

O navio chegou a New Bedford a 17 de Dezembro de 1921, proveniente de Boston. Uma notícia do Alvorada Diária dava a conhecer que o anterior dono o tinha vendido em hasta pública nesta cidade, uma vez que fora arrestado por causa de um carregamento ilegal de álcool [2]. Comprado pelo capitão Luís Oliveira, estava desde logo destinado à carreira New Bedford – Cabo Verde. Não se sabia então quando se realizaria a sua primeira viagem para as ilhas [3]. Encontramo-lo de novo em Janeiro 1923, sob o comando do seu proprietário, a regressar de Cabo Verde com carga de sal [4].


Pouco depois, em meados de Fevereiro [5], revelava-se um facto que iria complicar a vida do "Eugénia Emília". A 12, o governo dos Estados Unidos apresentara um libelo no tribunal contra o veleiro, que estava no porto de New Bedford, para que o proprietário deste pagasse uma multa aduaneira. Fora-lhe apreendida carga, estimada em 8970 dólares, montante pelo qual ia ser obrigatoriamente posto à venda. E porquê, esta medida? É que em plena lei seca, no "Eugénia" haviam sido encontradas 262 caixas de bebidas alcoólicas, cujo valor era calculado em 7860 dólares, mais 66 garrafas de álcool soltas (150 dólares) e 16 garrafas contendo… cocaína (480 dólares). Para além disso, também não declaradas, jóias que compreendiam relógios, correntes, braceletes, brincos e bolsas de filigrana, 36 peças de âmbar e perfumes. O barco acabou por ser vendido em 21 de Março a Januário O. Amarante, morador em Rotch St., 64, por apenas 6700 dólares [6]. A notícia dava a ficha técnica do navio que era a seguinte: 1050 toneladas brutas, 952 líquidas, 47 pés de comprimento, 35 de largura e 25 de profundidade. E lembrava-se que fora de Luís Oliveira, sob cujo comando fizera uma única viagem, de azarado desfecho. A 23, no tribunal federal, este confessar-se-ia culpado de contrabando de whisky, cocaína e jóias que pretendia fazer passar no porto de New Bedford e seria multado em 200 dólares [7]. A 6 de Julho anunciava-se a sua saída para dia 15, levando carga e passageiros destinados a Cabo Verde com bilhetes de ida por 50 dólares e de ida e volta por 125 mas com validade para seis meses. Os fretes para mil pés de madeira custavam 20 dólares, cada barril dólar e meio e um por cada saca transportada. O comando era agora da responsabilidade do capitão João Correia [8]. Quanto ao capitão Luís Oliveira, vemo-lo em 30 de Dezembro de 1926 a responder por vadiagem, desordem e embriaguez, em repetição de factos semelhantes que se haviam passado no Novembro anterior. O relato do estado em que o marítimo se apresentou é confrangedor: "Sujo, com a barba crescida, cabelo grisalho desgrenhado, coberto de andrajos, o homem que em tempo se orgulhava de ser comandante dum dos mais belos barcos da carreira cabo-verdiana, causava dó pela forma como se apresentou ontem no tribunal. Até aparentava estar um tanto confuso das suas ideias, e compreender bem pouco do que se passava em redor de si [9]."

Como "Eugénia Emília", no cais estatal de New Bedford - Créditos das Colecções Especiais da Biblioteca da Universidade Estatal da Pensilvânia, EUA
Voltamos a encontrar o veleiro em Maio de 1928, com o nome original de "Coriolanus" que terá até ao fim dos seus dias [1]. Procedente de Cabo Verde, estava em Block Island, a cerca de 13 milhas da costa de Rhode Island, com 48 passageiros e 32 tripulantes. No dia seguinte chegou a New Bedford e fundeou junto ao farol de Butler Flats [11]. Depois de longa viagem de 34 dias entre o Fogo e aquele local, foi ainda necessário aguardar a visita do médico do porto (que inspeccionou os passageiros no cais do Estado) e dos inspectores da imigração e da alfândega, acompanhados por um intérprete, no caso, um tal António F. Dias. Só em Janeiro de 1929 saberemos de novo do barco. Em carta enviada de S. Vicente ou do Fogo e recebida na redacção do Diário de Notícias, contava-se o conjunto de desaires sofridos na no entanto curta viagem de 23 dias, entre New Bedford e a ilha do Monte Cara [12]. Devido a forte temporal e deficiente acondicionamento da carga, a tripulação fora forçada a lançar ao mar grande parte desta, entre a qual madeira e camionetas…E da carga que fora desembarcada em S. Vicente, significativa quantidade estava em más condições, coberta de areia. O anónimo autor da carta terminava-a com a seguinte frase: «O descontentamento dos passageiros é enorme e o arrependimento de viajar em navio à vela é ainda maior.» 

A verdade é que a competir com os veleiros havia então as carreiras de vapores da companhia francesa Fabre Line [13], da qual Guilherme Luiz, proprietário do DN, era agente. E contra a de Cabo Verde, à vela, e afinal com razão, ele fazia campanha repetida no jornal. Leiamos, por exemplo, parte do longo texto que vinha agregado a um anúncio que propagandeava a viagem do S.S. "Roma" de Nova Iorque e Providence directamente para S. Vicente, em finais de Setembro de 1927: (…) Com um serviço desta natureza, um paquete capaz de fazer a viagem em 8 dias, proporcionando ao mesmo tempo ao passageiro todos os confortos modernos e com segurança, além de uma alimentação abundante e de primeira ordem, cozinhada à portuguesa e servida por criados portugueses, seria um contra-senso, mesmo uma loucura, pensar em navios de vela que tanta miséria e tragédia têm levado ao seio das famílias cabo-verdianas. Os navios de vela são uma coisa do passado e já há muito tempo deviam estar em exposição nos museus.[14] » Mas se por um lado paquetes como o "Roma", o "Asia", o "Saturnia" e outros iam cumprindo esse desiderato, o cruzamento do Atlântico à vela havia de durar até bem tarde. Após os meados do século XX, em finais de 1965, por exemplo, ainda o "Ernestina" fazia viagens para a América…

A 25 de Abril de 1929, o "Coriolanus", que saíra sete dias antes do Fogo, praça à qual pertencia, estava para chegar a New Bedford [15]. Após longa viagem de cerca de 25 dias, ancorou a 13 de Maio, pelas 10 da noite, à entrada da baía. A longa demora e a ansiedade derivada da mesma provocaram descontentamento entre a colónia cabo-verdiana local. Avistado cerca do meio-dia a leste de Cuttyhunk [16], foi acompanhado a partir das 6 da tarde por um barco da Guarda Costeira e logo depois pelo rebocador "John Duff", até ao farol Butler Flats, como habitualmente, onde lançou ferro. A 14, como também era costume, recebeu a visita das autoridades do porto e funcionários da alfândega e da emigração [17]. Transportava o "Coriolanus" nada menos que 134 passageiros e tripulantes, quantidade considerável de pessoas que pelo menos em parte haviam viajado com condições substancialmente melhores que as permitidas por outros veleiros da carreira de Cabo Verde. Pertencia agora a uma sociedade constituída por Roy Teixeira [18], António Macedo e um tal Albio (?) [19]. Com capacidade para 200 passageiros mais a tripulação, possuía casas de banho pavimentadas a mosaico, luz eléctrica, rádio, e uma orquestra, bem como um jornal que divulgava as actividades diárias. E havia festas constantes a bordo, como o "baptismo" do macaco, muito estimado pela tripulação – o qual acabou por morrer ao cair de uma verga durante uma tempestade [20]…

Ainda em 1929, mas em Junho, previa-se para breve nova partida da barca para Cabo Verde, desta feita carregada de automóveis, bicicletas e mais carga diversa. Seguiam para as ilhas 70 viaturas mas também oito cabo-verdianos deportados [21] e apenas dois passageiros regulares [22]. Comandava-a o capitão Alfredo Piedade e a carga destinava-se sobretudo à cidade da Praia. Esta viagem, também longa, levaria mais de 30 dias [23]…

Como "Coriolanus" - Créditos da Universidade de Massachusetts, Dartmouth, EUA
Tal como sucedia com outros veleiros desta carreira, nem sempre as viagens do "Coriolanus" se faziam entre New Bedford e Cabo Verde. Em princípios de Outubro de 29, o navio estava a fazer o percurso entre as ilhas e a Flórida, onde ia buscar madeira, com passagem pelas Bermudas. Disso mesmo era informado o DN pelo telegrafista de bordo, Olavo M. Cardoso [24], que também dizia em radiograma enviado para o jornal que de Cabo Verde trouxera Manuel Sacramento Monteiro, sobrinho de um dos donos do barco, Abílio Monteiro [25].

No ano seguinte, o "Coriolanus" seria motivo de notícia devido a problemas legais da entrada de passageiros e tripulantes nos Estados Unidos da América [26]. A 24 de Setembro já haviam desembarcado cinco passageiros mas diversos outros estavam em vias de ter de regressar às ilhas, a não ser que conseguissem provar o seu direito de entrada no país. O assunto meteu uma junta especial composta pelos inspectores da imigração de New Bedford George Y. Parker e John G. Hagberg e Miss Florence Welsh, da de Boston, que despacharam favoravelmente o caso de Adílio Gomes mas que remeteram dois para as autoridades de Washington. Na semana anterior, outros casos haviam sido vistos, com pouco sucesso para os interessados, nomeadamente o de Marcelo Quintino Galvão que inscrito como tripulante, estivera na cidade pela primeira vez em 1906. Após ter sido ferido, fora-lhe amputada uma perna. Munido de uma prótese, regressou a Cabo Verde, voltando aos EUA em 1912 para a consertar, o que agora pretendia de novo. No DN de 5 de Março de 1931 [27] ficamos a saber um pouco mais sobre as desventuras do barco e a sorte de significativa parte dos seus tripulantes. Nesse mesmo dia seguiram de autocarro para Boston e embarcariam no "Pátria", repatriados, vinte e seis tripulantes do "Coriolanus". Seis meses antes, o navio arribara muito danificado a New Bedford, onde ficara amarrado no Merril's Warf [28]. Grandes temporais tinham-lhe levado o velame e partido os mastros, para além de terem causado outros prejuízos importantes. Mas as reparações demoraram, porque os proprietários estavam sem fundos para o efeito – inclusive para o pagamento de ordenados à tripulação. Assim, esta passou grandes dificuldades, até ao momento em que o consulado português, tendo tomado conhecimento do drama, resolveu prover a sua alimentação. Na altura, ficaram a bordo apenas o capitão Francisco José Rosário, o contramestre Pedro Maria Andrade, o marinheiro José Baptista Jr. e o cozinheiro Nicolau Moniz [29]. Nesse mesmo dia, notícia de última hora dava conta do libelo interposto junto do United States District Court de Boston pelo causídico Joseph F. Francis, contratado pelo cônsul português, de modo que o navio fosse embargado e vendido e que a receita revertesse a favor da tripulação, colmatando assim os vencimentos em falta e as despesas do repatriamento. Contudo, a odisseia destes homens não acaba aqui. Chegados a Lisboa (o "Pátria" não escalou Cabo Verde), foram internados como náufragos (!) no asilo de Marvila, juntamente com loucos e doentes de outra natureza, como contava o Diário de Lisboa, em notícia de primeira página, reprovando tamanho atentado contra esses "portugueses de lei e de coragem" [30]. O Diário de Notícias de New Bedford, que divulgava esta nota do DL, dizia com razão que os homens do "Coriolanus" não eram náufragos. E adiantava: "No próprio dia do seu embarque foi embargada a 'Coriolanus' pelos salários devidos aos tripulantes. O resultado foi a barca ser vendida em hasta pública no último sábado, rendendo $690 para mais de $6000 de dívidas. No rateio que será necessário fazer, os salários devidos aos marinheiros que foram repatriados e que em Lisboa foram internados como doidos, serão reduzidos a nada. Eis o prémio de tanto sofrimento. É de crer que o governo português já terá atendido, ou cedo atenderá ao seu pedido, transportando-os para Cabo Verde"[31]. 

Em Dezembro de 1931, o "Coriolanus" passou a Clarence Nelson Rogers de Boston, por 250 dólares. E em Agosto de 1936, com a sua venda aos sucateiros da General Iron Smelting Co. de Fall River, acabava sem chama a vida deste garboso mas desafortunado navio que durante décadas sulcou o Atlântico, escrevendo um pouco da história trágico-marítima de Cabo Verde. Deixou porém saudades, como se pode comprovar pela inauguração de um modelo do veleiro no Museu da Baleia de New Bedford, em 19 de Maio de 1972 [32].

NOTAS

[1] Ver em http://www.bruzelius.info/Nautica/Ships/Merchant/Sail/C/Coriolanus%281876%29.html detalhada cronologia do veleiro. Conforme ali se diz, o "Coriolanus" fez em 1877 uma viagem entre a Sicília e Calcutá em 69 dias, tempo igualado por outros veleiros mas nunca batido.
[2] Lembramos que a chamada lei seca foi criada em 16.01.1919 e entrou em vigor exactamente um ano depois. Foi abolida em 05.12.1933.
[3] Alvorada Diária, 19.12.1921, p. 1 (incluindo este, todos os jornais citados são luso-americanos).
[4] Alvorada Diária, 17.01.1923, p. 1.
[5] Alvorada Diária, 14.02.1923, p. 1.
[6] Alvorada Diária, 22.03.1923, p. 6.
[7] Alvorada Diária, 23.03.1923, p. 1.
[8] Alvorada Diária, 06.07.1923, p. 4.
[9] A Alvorada, 31.12.1926, p. 2.
[10] Diário de Notícias, 24.05.1928, p. 1.
[11] Diário de Notícias, 25.05.1928, p. 2. No jornal, designado por "Butlers Flat".
[12] Diário de Notícias, 04.01.1929, p. 1.
[13] Com sede em Marselha, a Fabre Line funcionou entre 1868 e 1970. Recebeu subsídios do Estado português para manter carreiras que interessavam ao país e passavam por Portugal, Açores, Madeira, Cabo Verde e Estados Unidos da América.
[14] Diário de Notícias, 24.09.1927, p. 7.
[15] Diário de Notícias de New Bedford, 25.04.1929, p. 1.
[16] Cuttyhunk é uma das ilhas Elizabeth, no estado de Massachusetts.
[17] Diário de Notícias de New Bedford, 14.05.1929, p. 3.
[18] Roy Teixeira marcou durante cerca de meio século a comunidade cabo-verdiana dos Estados Unidos da América, país ao qual chegou com apenas 16 anos. Conhecido como "Lawyer Teixeira", para além de dono de barcos foi consultor de proprietários e capitães de outros. A este propósito, ver ALMEIDA, Raymond A. Cape Verdeans in America: Our Story, ed. Raymond A. Almeida. Boston: Tchuba-American Committee for Cape Verde, Inc., 1978, Boston.
[19] Deve ser gralha referente a Abílio Monteiro de Macedo.
[20] In texto referido na nota 4.
[21] Provenientes de outra barca, a "John R. Manta", que entrara nos Estados Unidos com clandestinos. Ver Diário de Notícias de New Bedford, 15.06.1929. p. 1 e 17.07.1929, p. 2.
[22] Diário de Notícias de New Bedford, 06.07.1929, p. 2.
[23] Diário de Notícias de New Bedford, 28.08.1929, p. 2.
[24] Olavo Cardoso suicidou-se em Cabo Verde, com 25 anos de idade, no início de 1932. Era então um dos proprietários da barca "Bradford E. Jones" (que na altura estava em Cabo Verde), juntamente com Abílio Monteiro de Macedo. A este propósito, ver Diário de Notícias de New Bedford, 14.01.1932, p. 1.
[25] Diário de Notícias de New Bedford, 05.10.1929, p. 2.
[26] Diário de Notícias de New Bedford, 24.09.1930, p. 1.
[27] P. 1.
[28] Zona histórica de New Bedford, ligada à pesca da baleia.
[29] A lista dos repatriados era a seguinte: Francisco Cabral Fernandes, segundo-piloto; Olavo Monteiro Cardoso, comissário; Anastácio Monteiro, Pedro Semedo Monteiro, Henrique de Oliveira, Vasco Almeida, Alfredo Manuel Lima, Jorge António dos Santos, Álvaro A. A. dos Santos, José Cabra, Miguel Barbosa Amado, Domingos Pereira Antunes, Jorge Cabral Avelino, Armando Garcia, Eduíno Mendes e Francisco Gomes Furtado, marinheiros; Augusto C. Fortes, despenseiro; Hermano Alves Pina, enfermeiro; José Vieira dos Santos e Custódio Gomes Pina, carpinteiros; Isabel Pires da Veiga e Luísa Barbosa Fernandes, criadas; António Nobre de Oliveira, Francisco Almeida e Marcelo Quintino Galvão, criados. Manuel Sacramento Monteiro, figura que depois granjeou considerável importância no Fogo, era declarado como praticante.
[30] Diário de Lisboa, 20.03.1931, p. 1.
[31] Diário de Notícias de New Bedford, 08.04.1931, p. 1.
[32] No âmbito de sessão promovida pelo museu e pela comunidade cabo-verdiana local em que discursou o Dr. Norman Araújo, ali nascido mas descendente de cabo-verdianos. Norman Araújo era doutorado em Letras por Harvard com tese sobre a literatura de Cabo Verde premiada pela Academia Internacional de Cultura Portuguesa com o prémio Bartolomeu Dias. O modelo foi feito pelo dr. Costagliola de Sean Cliff, Long Island. A este propósito ver o Diário de Notícias de New Bedford de 20.5.1072, p. 2   e 31.5.1972, p. 2.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

[0600] Já só faltam 400 para 1000 e 9400 para 10000... (hum, grandes contas...)

Pensei em comemorar o post 600 com mais um texto meu - desta feita, longo historial  sobre o navio "Coriolanus", famosa barca  da carreira de Cabo Verde - já publicado no jornal "Terra Nova" e antes no "Esquina do Tempo", como é habitual. Mas acabei por me decidir por mais duas fotos do meu amigo José Carlos Marques, fresquinhas, com o Mindelo visto de longe ou à noite que são as actuais maneiras de olharmos para a nossa amada cidade sem chorarmos pelas malfeitorias que lhe andam a fazer... No post 601 falarei então longamente do "Coriolanus" que tem muito que contar.

E um grande abraço a todos aqueles que de uma maneira ou de outra me acompanharam nesta caminhada "sabim" e já seiscentista...

Foto José Carlos Marques - Setembro.2013

Foto José Carlos Marques - Setembro.2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

[0599] Post n.º 300 de 2013 - "Crónica do Norte Atlântico" de Junho deste ano. Ultrapassada por outros assuntos, só agora aqui surge



Crónica de Junho.2013
 
VELEIROS DA "CARREIRA DE CABO VERDE - EUA" E OUTROS NAVIOS AMERICANOS RELACIONADOS COM AS ILHAS


Adelaide

Uma das mais antigas notícias que até agora encontrámos alusivas à "carreira de Cabo Verde" é a do iate Adelaide, de Outubro de 1885 [1]. Dizia o jornal americano de língua portuguesa O Progresso Californiense que este barco saíra a 2 desse mês de New Bedford, com destino à Brava. Comandava-o o capitão Lopes (pelo apelido, eventualmente cabo-verdiano) e transportava oito passageiros e mercadorias. Os consignatários do navio eram Loum Snow e o filho [2], também proprietários da barca Verónica.

Spring Bird

No dia 12 de Novembro de 1885 saía de New Bedford o iate de 80 toneladas Spring Bird [3], para a Brava. Comandava-o João Tiago Gomes, simultaneamente dono de uma hospedaria na rua South Water. O navio fora fretado em Provincetown, Mass., por João T. Gomes, António Faria e Arsénio Freitas, tudo gente de Cabo Verde. Levava a bordo 44 pessoas, sendo 19 delas passageiros. A carga era constituída por milho ensacado, farinha e petróleo.

Na Portuguese Passenger Master List indica-se que o Spring Bird chega a New Bedford em 30 de Abril de 1886, obviamente de regresso de Cabo Verde [4]. É então que rebenta uma polémica envolvendo o próprio João Gomes que pretensamente ganhara dinheiro à custa de excesso de passageiros trazidos das ilhas em condições degradantes [5]. Um telegrama vindo de Boston, divulgado pelo Progresso Californiense a 15 de Maio, dava conta pormenorizada dos acontecimentos. Ao que parece, não tendo conseguido carga para a viagem de regresso de Cabo Verde, tinha no entanto ali arranjado 75 passageiros «de ambos os sexos e de todas as idades» com pagamentos que oscilavam entre os 20 e os 25 dólares. Alguns, sem dinheiro, tinham-lhe pago em géneros e em propriedades. Mas para esses passageiros, não se tinham adquirido provisões e a cama, no porão, era o lastro do navio, onde se deitavam sem qualquer outro conforto. Pior que isso, quatro raparigas entre os 13 e os 15 anos tinham ficado na pequena câmara do capitão… Três dias depois da partida do arquipélago, a ração diária seria apenas constituída por um bolo do milho, água, chá e café. Agravando a situação, a viagem que se esperava que durasse 20 dias prolongara-se por um mês, pelo que os passageiros tinham chegado aos Estados Unidos depauperados. O capitão foi por esse motivo acusado de ter violado as normas de transporte de passageiros e metido na cadeia, a aguardar julgamento. Porém, a 12 de Junho, o mesmo periódico suavizava as acusações feitas ao capitão [6]. O exemplar do jornal está em muito mau estado, com partes em falta, mas ainda assim percebe-se que agora se considerava que a situação fora empolada: «À sua chegada, tudo se encontrou legal: um ou dois dias depois é que os passageiros, alguns, se queixaram, apresentando como causa terem passado privações, de má acomodação e não sei de que mais. O facto é, segundo narra a crítica, que João Gomes é vítima de vindicta mesquinha e que alguns passageiros que vieram para (…) pagarem as passagens e querendo (…) …[esqui]var-se a isso foram aconselhados (…) daqueles meios para o conseguir (…) questão está nos tribunais, esperando-se solução, que será publicada.» Mas o certo é que o desfecho deste imbróglio não foi favorável a João Tiago Gomes. A 26 [7], o Progresso informava que o capitão fora condenado no U. S. Circuit de Boston a três meses de prisão, a mil dólares de multa e ao pagamento das custas do processo. Na altura, estava encarcerado na prisão de Worcester, Mass. Não bastando isso, o homem enlouquecera. E o Progresso avançava com as causas: «Foram uns tipos ignorantes, sem o menor viso de sentimentos humanos, que promoveram esta causa contra o honrado João Gomes o qual, durante a sua estada na Brava, quando prevalecia ali uma terrível seca e que o povo se encontrava em circunstâncias desgraçadas, desmaiando pelas ruas, tal era a fome, tomou os passageiros que a lotação do navio permitiu e trouxe-os para este país, livrando-os de uma morte lenta e horrível. Alguns deles, senão a maior parte, hipotecaram a João Gomes alguma propriedade que possuíam, como garantia do pagamento da passagem quando chegassem a este país. Destes, foram alguns aconselhados ao chegarem aqui que, para se esquivarem ao pagamento das passagens deviam acusar o capitão do navio de mau tratamento, de péssimas acomodações e de ter trazido excesso de passageiros.»

Santo ou demónio, altruísta ou usurário, João Tiago Gomes fica como personagem dramática da carreira de Cabo Verde. A história de que foi protagonista parece mostrar-nos nas entrelinhas facetas de aparente mau estar e rivalidades existentes no meio marítimo local. Por outro lado, não podemos deixar de sentir algum desconforto com o processo como os desgraçados famintos da Brava pagaram a sua viagem para os Estados Unidos…

Navios baleeiros e barris de óleo de baleia no porto de New Bedford (cerca de 1940)

Napoleon

O Progresso Californiense de 6 de Agosto de 1885 [8] relatava que a escuna James A. Garfield, vinda do Ártico, trouxera notícias dos naufrágios da baleeira Napoleon, de New Bedford [9], e da Gazelle, de S. Francisco. Mas se esta não perdera homem nenhum, a Napoleon tivera sorte diversa: 22 tripulantes haviam perecido. A 13 [10], a notícia era mais desenvolvida e dava conta da identificação dos náufragos. Entre eles, havia vários do Massachusetts, Maine, Ohio, Nova Iorque, Japão, Peru, Áustria, Irlanda (Dublin), Dinamarca, Inglaterra, Índias Ocidentais, Holanda e mais de uma dezena de Cabo Verde: António Gomes, António Lourenço, Joaquim Coelho, José António, José Joaquim, António Manuel, António Melander, João Borba [11], José Manuel, Domingos Borges, Pedro Wilson, Francisco António e João Lomba, este especificamente identificado como sendo da Brava.

Mary E. Simmons

A 29 de Novembro de 1885 [12], o capitão Mandley da escuna baleeira Mary E. Simmons informava de New Bedford que perto de Cabo Verde, um bote comandado pelo terceiro-piloto João Pereira fora afundado por uma baleia, não tornando a ser visto nenhum dos seus tripulantes, quase todos naturais dos Açores e de Cabo Verde. Mas as relações da Mary E. Simmons com o arquipélago africano não acabaram neste episódio. A 7 de Janeiro de 1886, quando seis dos tripulantes regressaram a New Bedford  [13] – entre os quais os cabo-verdianos Lourenço Ludovino e António Manuel de Lima –, soube-se o resto da sua saga: no final do Novembro anterior, ao avistarem baleia, deitaram três botes ao mar. Dois deles fisgaram cada um seu cetáceo que trouxeram para perto do Mary. Porém, depois de terem trancado uma baleia, esta mergulhou e subiu em seguida debaixo de um dos botes que lançou pelos ares, bem como os tripulantes do mesmo. Por um acaso da sorte conseguiram virá-lo e reentrar nele, tendo ficado à mercê do destino três dias e duas noites sem água nem comida. Valeu-lhes serem salvos por uma galera inglesa que os levou para Pernambuco, de onde seguiram para Nova Iorque e daí, de regresso a casa.

Eis pois um curto relato resultante de longa e profunda investigação que temos vindo a realizar, relativa às relações do arquipélago cabo-verdiano com a América – no caso vertente, a sua história trágico-marítima. Em função do extenso material recolhido, podemos assegurar aos leitores muitas outras crónicas do género, sempre eivadas de dramatismo e angústia, mas também plenas de heroísmo e de persistente esperança numa vida melhor.

NOTAS

[1] O Progresso Californiense, 15.10.1885, p. 2.
[2] Loum Snow & Son, de New Bedford. Antes, este Snow fizera parte da firma Cook & Snow, sempre ligados ao negócio baleeiro e à marinha mercante.
[3] Notícia do New York Times, 13.11.1871, dá-o como sendo então de Canning, Nova Escócia, neste ano de 1871, a carregar café.
[4] http://www.dholmes.com/ships.html (visto em 28.04.2012).
[5] O Progresso Californiense, 15.05.1886, p. 2.
[6] O Progresso Californiense, 12.06.1886, p. 1.
[7] O Progresso Californiense, 26.06.1886, p. 2.
[8] P. 2.
[9] A 5 de Maio.
[10] O Progresso Californiense, 13.08.1885, p. 2
[11] Alguns destes tripulantes podem não ser de origem cabo-verdiana. Por exemplo, o apelido Borba é relativamente frequente nos Açores.
[12] O Progresso Californiense, 14.01.1886, p. 2.
[13] O Progresso Californiense, 04.02.1886, p. 2.