domingo, 16 de fevereiro de 2014

[0751] Crónicas do Norte Atlântico - CURIOSOS ASPECTOS DA AVENTUROSA VIDA DO CAPITÃO DE VELEIROS "JOHN" DE SOUSA

Praia de Bote inicia hoje uma peregrinação de três dias por idêntico número de "Crónicas do Norte Atlântico" que tinham publicação atrasada neste blogue, embora já todas vistas no blogue irmão "Esquina do Tempo". Uma nova, que seguiu ontem para o jornal, sairá em altura oportuna primeiro do "Esquina" e depois aqui, como é costume.



Crónica de Novembro.2013
  
CURIOSOS ASPECTOS DA VIDA AVENTUROSA DO CAPITÃO DE VELEIROS "JOHN" DE SOUSA

Em notícia bombástica de primeira página, o Diário de Notícias de New Bedford de 18 de Janeiro de 1929 referia que fora apreendida na Geórgia a escuna Fannie Belle Atwood e que o seu capitão, João L. Sousa (1) fora preso, "acusado de passar ilegalmente para os Estados Unidos centenares de estrangeiros". Denominado como "chefe de uma das maiores companhias de contrabandistas estrangeiros no Sul" e procurado desde 1925, o capitão John (como também era conhecido) fora capturado na cidade costeira de Brunswick por um esquadrão de marshalls. Imediatamente conduzido a Boston, ali iria responder a um processo que lhe fora posto dois anos antes. Portugueses (decerto na maioria cabo-verdianos) mas também espanhóis, pagando entre 400 e 1000 dólares cada um, eram os passageiros que durante anos introduzira clandestinamente nos States. O capitão, que transferira a sua actividade de New Bedford para a zona costeira da Georgia cerca de 1925, era naturalizado americano desde Junho de 1926. Fora detentor da escuna William A. Graber que vendeu para depois adquirir a Fannie Belle Atwood (2) com a qual fez várias viagens entre Cabo Verde e a Flórida. João de Sousa comandara também a Georgette que naufragou algures na América do Sul, em desastre no qual se salvaram todos os tripulantes mas foram perdidos os bens que o barco transportava.

O capitão "Jonh" de Sousa
No dia seguinte, o mesmo jornal titulava o desenvolvimento da notícia com um enigmático texto: "O capitão Sousa está secretamente acusado em Boston – Vem da Georgia, onde foi preso, para aquela cidade, onde responderá, crê-se que por passar passageiros ilegalmente neste porto". O esquema encontrado para o negócio, segundo as autoridades de imigração de Jacksonville, era o seguinte: o capitão tinha duas tripulações, uma composta de verdadeiros marinheiros e outra de patrícios portadores de documentos de navegação falsos que chegavam escondidos em carregamentos de sal (3). Quando a escuna entrava no porto, estes passavam por marinheiros e indo para terra nunca mais regressavam. Na altura em que o navio se preparava para zarpar, as autoridades de imigração encontravam intacta a tripulação (4).

Na manhã de 28 de Janeiro, João de Sousa está no Tribunal Federal, perante o juiz James A. Lowell (5). Mas alega inocência e sai sob fiança de 2500 dólares. Curiosa e estranhamente, a acusação referia-se apenas a um clandestino, Manuel Mendes, havia 18 meses residente em Hartford, Conn., também ele sujeito a fiança do mesmo montante e que se esperava viesse a depor como testemunha principal no dia do julgamento. O capitão John acaba por se dar por culpado da entrada ilegal do Mendes nos EUA e é sentenciado ao pagamento de uma multa de 1000 dólares e a prisão durante quatro meses em New Bedford (6).

Em finais de Outubro de 1933, a escuna Corona estava amarrada ao cais do Gás, em New Bedford, a receber carga com destino a Cabo Verde (7). Chegaria a São Vicente a 17 de Dezembro, após 28 dias de viagem, mais oito que o previsto, devido ao tempo desfavorável (8). Inclusive, três tanques de água assentes no convés, destinados ao consumo da tripulação e passageiros haviam sido levados pelas ondas. A Corona, que fora construída em Bristol, R.I. (9), como "navio de corridas", estava agora na carreira de Cabo Verde sob comando do nosso capitão, seu proprietário – o qual esperava voltar aos Estado Unidos da América na Primavera seguinte, com passageiros e carga. Assim aconteceu, de facto. Desta feita, porém, a viagem foi mais longa e durou 32 dias, desde a Brava. Trazia 25 passageiros e carga diversa. Chegado a New Bedford a 2 de Junho de 1934 (10), esperava fundeado a 5 a visita das autoridades de saúde e da alfândega, antes de atracar ao cais.

O Corona
Em 1935, o navio era dirigido pelo capitão Rui B. Carvalho (11). Chegou de novo a New Bedford, a 15 de Junho, numa das suas mais demoradas viagens, após 54 dias de bom tempo e muita calmaria. Trazia carga diversa e oito passageiros, para além de 21 tripulantes. Dias depois de largar de Cabo Verde, o capitão Carvalho adoeceu gravemente e logo que chegado deu entrada no St. Luke’s Hospital, em perigo de vida. Ali faleceria a 27 de Junho, aos 44 anos (12). A bordo vinha um passageiro distinto, o professor primário, poeta, jornalista e activista da africanidade Pedro Cardoso, mais conhecido por "Afro" (13). Cardoso ia aos Estados Unidos com o objectivo de recolher entre os seus patrícios das colónias cabo-verdianas da América dinheiro para ajudar a população das ilhas, mais uma vez a passar fome (14). A triste sina de sempre…

Em Setembro, a Corona, então atracada no cais Merrils, preparava nova partida para Cabo Verde, com carga e 25 passageiros (15). Era agora comandada pelo capitão João Silva e levava como imediato o seu proprietário, João de Sousa (16). Mas em Outubro de 1938, este era de novo o comandante. Na altura amarrada ao cais Philadelphia & Reading, a Corona estava a carregar para partir antes do fim do mês, para a Brava. Levaria oito passageiros (17). Contudo, parece que para além de 15 tripulantes transportava apenas dois passageiros, Ana Gomes, de 70 anos, e Teófilo da Silva Neves, de idêntica idade, que queriam acabar os seus dias na terra onde tinham nascido… (18) O barco chegou a São Vicente, a 14 de Dezembro, sem incidentes, após 37 dias de viagem (19).

Segundo o DN, em 1939, a Corona era à época o único navio da carreira de Cabo Verde (20). Previa-se que chegasse, vinda da Brava a 20 de Julho, 35 dias depois, número aproximado que em geral levava no trajecto (21). Afinal, dessa vez foram 45 os gastos. A notícia do DN é um pouco mais desenvolvida que habitualmente e mostra algumas facetas das chegadas de navios a New Bedford (22). Assim que a escuna carregada com feijão e tabaco ancorou no porto, dirigiram-se para bordo o funcionário da Alfândega Dave J. Allen, o Dr. Edmond F. Cody, dos Serviços de Saúde Pública, o inspector dos Serviços de Imigração Charles F. Quinlan e uma tradutora, aparentemente de origem lusitana, Lucy Dias. Quanto aos 15 tripulantes, dizia-se que nove eram portugueses e os restantes naturalizados cidadãos americanos eventualmente de origem portuguesa. Comandada ainda pelo capitão-proprietário João Sousa, largaria no Outono seguinte com passageiros que iriam passar o Inverno a Cabo Verde, ficando durante essa estação a fazer cabotagem entre Cabo Verde e a costa de África. A 18 de Setembro de 1940, em plena II Guerra Mundial, a Corona chegou de Cabo Verde após longa viagem de 47 dias, com 15 tripulantes e outros tantos passageiros (23), sem avistar submarinos ou demais vasos militares alemães. Trazia também arroz, milho picado, feijão, tabaco e algumas latas de xarope de cana-de-açúcar. O capitão Sousa, questionado pela imprensa sobre a situação económica em Cabo Verde referia que os preços dos artigos estavam altos devido às contingências provocadas pelos efeitos da guerra. O barco entrou na doca seca para ser limpo e reparado, tendo em vista a sua partida em Outubro ou Novembro. Com efeito, em meados de Novembro estava pronta para voltar às ilhas (24).

Mais não sabemos da Corona. Relativamente ao capitão, ao invés de o considerarmos mero "contrabandista de estrangeiros" (como o classificava o DN de 18 de Janeiro de 1929), podemos sem grandes pruridos inclui-lo no vasto grupo de comandantes e donos de navios da carreira de Cabo Verde que, embora ganhando com o negócio mas arrostando contra inúmeros perigos no mar e em terra, possibilitaram a saída e salvação de muita gente de um malfadado arquipélago onde neste tempo a fome, a miséria e a morte faziam teimosa parte do quotidiano (25). De qualquer modo, se infracções praticou às rigorosas leis da imigração americana, não foram elas significativas a ponto de o impedirem de continuar nos Estados Unidos (e no Atlântico) a profissão que lhe granjeou a aura de um dos de maior sucesso na sua actividade. Para além disso, abstraindo o amor filial do escritor Teixeira de Sousa, há que fazer fé na dedicatória que este apôs ao seu livro de contos "Contra Mar e Vento": "À memória do capitão John, meu Pai – capitão que foi de veleiro e sabia protestar contra mar e vento e contra quem de direito for e pertencer possa"…

Notas:

01. Tratava-se do capitão João Lúcio de Sousa (1892-1958), pai do notável e malogrado médico e escritor cabo-verdiano Henrique Teixeira de Sousa (1919-2006), longo colaborador deste jornal. Descendente de pescadores baleeiros madeirenses, era natural da ilha Brava. Casou em 1918 com a foguense Laura Martins Teixeira e fixou-se em São Filipe, ilha do Fogo, onde ainda existe o sobrado por ele mandado fazer. Teve outro filho, Orlando (1921 - …), ainda vivo em 2013 e a residir no Bombarral, Portugal. O capitão John faleceu respeitado, em São Vicente. Estas valiosas informações foram-nos prestadas pelo neto, o médico nosso amigo e colega de Liceu Gil Eanes Aníbal Orlando "Landim" Teixeira de Sousa.
02. Que pertencera a Ernest A. Montrond, de New Bedford e fora barco de pesca em Gloucester, Mass.
03. Há conhecimento da importação de sal de Cabo Verde para os Estados Unidos da América, para aplicar nas ruas e sobretudo nos carris dos eléctricos, em altura de nevões.
04. DN, 19.01.1929, p. 1.
05. DN, 29.01.1929, p. 2. É dado como morador no 79 de Grinnell St., New Bedford.
06. DN, 28.02.1929, p. 1.
07. DN, 31.10.1933, p. 2.
08. DN, 23.01.1934, p. 2.
09. DN, 18.08.1938, p. 7.
10. DN, 05.06.1934, p. 5.
11. DN, 16.07.1935, p. 2.
12. DN, 27.09.1935, p. 8.
13. Pedro Monteiro Cardoso (Fogo, 1890 – Praia, 1942).
14. Uma das acções resultantes desta visita de Pedro Monteiro Cardoso foi a soirée dançante que se realizou a 14 de Setembro na Aliança Liberal Portuguesa, na Delano St., 4, onde ele descreveu os horrores da fome que estava a lavrar no arquipélago (ver DN, 13.09.1935, p. 2).
15. DN. 19.09.1935, p. 2.
16. DN, 15.10.1935, p. 2.
17. DN, 27.10.1938, p. 8.
18. DN, 09.11.1939, p. 2.
19. DN, 15.12.1938, p. 3.
20. DN, 05.07.1939, p. 2.
21. DN, 01.08.1939, p. 2.
22. DN, 19.09.1939, p. 2.
23. DN, 20.09.1940, p. 2.
24. DN, 16.11.1940, p. 2.
25. DN, 25.09.1926, p. 1. Joaquim Duarte, comandante da Lina ou Elizeu Neves, também capitão da Fannie Belle Atwood, entre muitos outros. Estes, por motivos semelhantes aos do capitão John, foram sentenciados cada um a um ano de cadeia e ao pagamento de 1000 dólares.

1 comentário:

  1. Caramba, tudo isto é aventura marítima da mais excitante e saborosa. Conheci o irmão do Dr. Teixeira de Sousa no funeral deste. Parabéns ao Djack pelo seu grande e meticuloso trabalho de pesquisa. Um dia alguém tem de compilar todos estes dados para se escrever a nossa história marítima.

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