sexta-feira, 28 de novembro de 2014

[1148] Para o Fogo, com amor

José Luíz Tavares
Aqui no Praia de Bote, uma sequência de coincidências relacionadas com a ilha do Fogo terminou com a inesperada erupção do vulcão, seu ícone e praga eterna: depois de falarmos de amigo nosso que estava a prever subir a montanha acompanhado de um dos mais famosos escaladores portugueses e de darmos aos leitores conhecimento do novo livro do poeta José Luiz Tavares (a sair em breve), eis que os desígnios do destino fizeram explodir o cone foguense, com todo o cortejo de desgraças habituais nestes casos (sem desastres pessoais, felizmente, valha-nos isso...). Assim, em vez de reproduzir notícias que a imprensa vai dando, Praia de Bote lançará para o mundo imagens e poemas da obra que desde já se configura como marco importante na poesia cabo-verdiana. E lembramos aos mais distraídos que nada tem de oportunista, pois foi escrita (e fotografada) quando ainda não se imaginava a desgraça que aí vinha.

Do livro "Coração de Lava", de José Luiz Tavares, em pré-publicação no Praia de Bote (foto de Duarte Belo)

Vês a casa na manhã do fogo.
O susto paralelo incitado pelos sinais
da catástrofe. Bangaeira, boca fonte
e portela eram nomes acesos nas gargantas
como vibráteis pedras queimando a planta
dos pés do primeiro peregrino

irrompendo pela mansuetude imaculada,
pela fome dos filhos percutindo, com
a facilidade com a que bem-aventurança inaugura
o caminho da ruína, a tábua roída dos feitos
memoráveis, esse homologado prelúdio
a um tempo de vivificados lamentos
espreitando à soleira da mudez essencial.

Conheces agora a angústia do animal
encurralado, o pavor do homem fixado
à correnteza do mundo, seguindo a metamorfose
inquietante, ou a quezília das parcas deliberando
sobre o teor do naufrágio e da solidão iniludível.

Mas é de prodígio que se trata quando a fé
e o presságio são todo o solo para a semeadura,
ou a enxada canta ao vento viandante
hasteando a branca bandeira do armistício
em meio às vozes narrando o retorno e o renovo.

E se é certo que a opacidade é a oferenda recolhida,
a mais alta graça é filha da premonição;
então a terra exulta desde a placenta da palavra
pedra, porquanto a mão que amacia o linho
tece a película e o prelúdio do novo dia,
e a neve é sonho na grande nave
que dezembro agita e aturde.

Mas grita, ó homem, que o inverno é uma memória
benigna, e a mão que persigna é haste e alvor,
e louvor o gesto que resgata ao exílio
e à terra quebrantada restitui o bulício das estações
inaugurais, o timbre e o sopro para invocar
o sagrado nome do fogo, ou a grande hossana
à vida que há de nascer, porquanto cantaste
na infância do poema (decerto com a dissonância
que não ignora o lastro da dúvida e a dívida
acumulados), as aflições substantivas.

Agora canta a pedra que te entra pelos poros,
tu, peregrino alevantado sobre os pináculos
da vida, vaga resgatada à orla do olvido, onde vês
o futuro mar anterior ao dilúvio, e onde a cinza
redemoinhando assinala a rota das grandes erupções
petrificando a casa na retina, essa humana memória
jazendo à sombra do pico mais cimeiro.


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