quinta-feira, 24 de março de 2016

[2071] "Mangatchada" e outras memórias são-vicentinas e santantonenses, por Maria Beatriz Lima Barreiro

É neta do nosso colaborador Adriano Lima e hoje compartilha connosco parte das lembranças de viagem relativamente recente a São Vicente e Santo Antão. Sim, "parte", porque embora ela não se dê conta disso, ficou de certeza com muitas mais do que aquelas que aqui nos conta. Mas o resto, que irá arrancar da memória para futuro texto que teremos tanto prazer de publicar como este, fica para próxima oportunidade. Um agradecimento ao avô que a incentivou e a ela que o escreveu.

Em 2012, aos 12 anos, fui a Cabo Verde com os meus avós para participarmos na festa dos 90 anos da minha bisavó paterna. Foram também a tia Ana, o marido e o filho, priminho Lourenço, que ainda só tinha dois anos. A minha mãe, que é professora, não foi porque era o período dos exames.

Como já tinha viajado com os avós para os Estados Unidos, a avó alertou-me para não ir a contar com nada parecido com aquele país, porque Cabo Verde era África, ilhas áridas e pobres. Portanto, quando desembarcámos no aeroporto de S. Vicente, não foi surpresa encontrar uma terra diferente do que eu conhecia mas nem por isso menos interessante. Não demorei a descobrir a atracção própria que uma ilha tem. O mar à volta a perder-se de vista, as paisagens vulcânicas, tudo isso foi novidade para mim. Mas uma coisa que mais me espantou foi ver a ilha vizinha, Santo Antão, tão perto e tão enorme. O meu avô disse que tínhamos programado uma viagem à ilha e fiquei logo cheia de curiosidade.

Na ilha de S. Vicente, deparei com o Mindelo, cidade atraente e em nada diferente de outras que conheço do Algarve, onde vivo. Vi casas semelhantes a algumas que se vêem em Tavira, Vila Real de Santo António e mesmo em Faro. Demos várias voltas pela ilha e pela cidade e emocionou-me ver as casas onde viveu o meu avô e os locais onde ele brincava e jogava à bola na rua. E ele então disse-me que uma das brincadeiras à noite na sua rua era a mangatchada, o que me fez sorrir por causa do nome, que é crioulo, mas também por causa do seu significado. E ele explicou-me que a origem do nome deve estar no verbo agachar, tendo eu percebido logo que é a “apanhada” que eu às vezes praticava com as minhas amigas no jardim-escola e mesmo na escola.

A festa do aniversário da bisavó, realizada no Hotel Porto Grande, foi muito participada. Uma noite cheia e inesquecível. Nesse dia, fomos almoçar a um restaurante chamado “003” e o meu avô e o pai do Lourenço comeram cachupa guisada. Tal como todos os acompanhantes, repetiram a dose mais de uma vez, e tinham comido antes, como entrada, uns pastéis de peixe muito saborosos. Resultado: no jantar do aniversário quase que não tocaram nas comidas servidas.

Mas a grande expectativa foi a viagem a Santo Antão, que o meu avô me explicou ser a ilha de alguns antepassados. A travessia do canal foi sensacional, com um mar calmíssimo e agradável só de o ver. Deu para perceber bem o formato em concha da baía enorme e também achei graça ver que a cara do Monte Cara ia fazendo trejeitos à medida que se deixava a baía. Depois de passar o ilhéu, ela fica mesmo completamente desfigurada. Achei isso muito engraçado. A ilha de Santo Antão é espectacular, com as suas montanhas de uma altura impressionante e com os seus vales profundos. Mas esperava ver mais gente nos campos a trabalhar na lavoura. Entrámos pelos vales da Ribeira da Torre e da Ribeira Grande, onde nasceram ancestrais nossos. Achei incrível observar aquelas paisagens e imaginei como seriam e como viviam as pessoas no passado. O Paul ficou em último lugar porque foi na viagem de regresso para apanhar o barco.  É um vale lindíssimo e mais verde que os outros.

Na minha rua em S. Vicente fiz logo amiguinhas, por intermédio da minha prima Roana, filha de um primo direito do meu avô. Estávamos no mesmo prédio, o que permitia que todos os dias nos reuníssemos para a brincadeira. E a mangatchada era sempre a seguir ao jantar. Tudo servia para esconderijo, as esquinas das ruas, os becos, os carros, etc. O sítio era sossegado e propício para isso. Não percebia o crioulo das minhas companheiras mas aos poucos já entendia quase tudo, visto que elas se dedicaram à tarefa de mo ensinar. Não foi difícil, pois se trata de uma espécie de Português. Foram muito queridas. De resto, não encontrei um ambiente social diferente daquele que tenho em Portugal. Nas ruas, na Praça Nova, nas lojas, o estilo de vida é semelhante, pelo que não tive a sensação de ter ido àquela África autêntica de que ouço falar e vejo nos filmes. Bem diz o meu avô: são ilhas atlânticas. E na verdade são.

Um dia vou voltar a S. Vicente, ilha que me deixou saudades.

Maria Beatriz Lima Barreiro

18 comentários:

  1. NETA DE PEIXE...CLARO!
    Braça sorridente
    Zito

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  2. Djack, está no texto assim: Na ilha de S. Vicente, deparei como Mindelo, cidade atraente e em nada diferente de outras que conheço do Algarve, onde vivo."

    Deve haver um lapso porque difere do texto original. Devia ser "deparei com o Mindelo". O "o" deve ter-se colado ao "com".

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  3. Claro que sim, topa-se logo... questão de cola - ou, "à Sanjom", questão de "colá".

    Então e as felicitações à novel escritora? Lá por seres avô, não quer dizer que não dês os parabéns à rapariga, que ela bem merece. Então? Bem, bem...

    Braça descolada,
    Djack

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  4. Ora aqui está uma bela iniciativa (da neta e do avô!)
    Esperemos que seja a primeira de muitas viagens da Beatriz a Cabo Verde e o primeiro de muitos outros textos sobre as ilhas.
    O avô só pode estar orgulhoso! Pelo texto e pela neta gira que tem!

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    1. E a Carmo bem pode pegar nas teclas do portátil (já não se diz "caneta") e fazer o mesmo. Prega aqui com uns 100 textos e depois publica um livro chamado "Crónicas da Praia de Bote". Quem é que tem boas ideias, quem é?

      Braça à espera,
      Djack

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  5. Um beijinho de felicitações à Beatriz por não ter guardado só para si as suas juvenis memórias da viagem a Cabo Verde. Espero que apareçam aqui os seus pais.

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  6. Obrigado, Carmo. O Djack tem razão. A Carmo podia vir aqui de vez em quando "cronicar-nos" as suas experiências cabo-verdianas. Tenho a certeza de que seria um regalo para o Praia de Bote. O Monte Cara sorriria, embevecido.

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  7. 100??? Até fiquei petrificada! Não faz a coisa por menos... Não é que não tenha nada para dizer mas essa fasquia é dose! E já percebi o recado, mas não me manifesto mais vezes por falta de tempo. Os meus afazeres andam a mutilar outros interesses e vontades. Além disso, não gosto de escrever por escrever, há coisas que não devem ser tratadas com ligeireza. Manias... ou incapacidades... Admiro muitíssimo a dedicação que emprega o trabalho que aqui faz. Braça entusiasta!

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    1. Não há recado nenhum e quanto à perspectiva 100, não é nada má e muito menos impossível. Eu escrevo desde 2002 em jornais de Cabo Verde e já ultrapassei bem esse número. Não é nada difícil. É é demorado, mas ninguém tem pressa. E eu também não escrevo "por" escrever; escrevo "para" escrever. Cá fico à espera do primeiro e depois só faltarão 99. Vai ser um instante e logo, logo, estaremos no Centro Cultural do Mindelo ou na Associação Caboverdeana de Lisboa para o lançamento das "Crónicas da Praia de Bote" da Maria do Carmo Lorena. Ofereço-me desde já para a inevitável faladura de circunstância. Afinal de contas, sou eu o santo protector da Praia de Bote... ahahahaha

      E uns tempos depois será a vez das "Crónicas de Cabo Verde" da Maria Beatriz Lima Barreiro. Mas essa quem lhe vai apresentar o livro será o coronel, é óbvio, o homem não vai abdicar disso.

      Braça, continuando à espera (de ambas),
      Djack

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  8. No post anterior falta a preposição "e" (a dedicação e o trabalho).
    Adriano, obrigada! Um abraço.

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  9. Sem dúvida que se trata de uma observadora interessada nas gentes, nas coisas e na paisagem. Gostei a valer. O interessante é que a narradora nos conduz por sítios e lugares que conhecemos, mas com um olhar diferente de descoberta maravilhada, que nós, os leitores ficámos com a impressão de estar a (re)conhecer as ilhas descritas. A Carmo tem razão, Mindelo faz lembrar algumas cidades do Algarve. Terá sido algarvio o seu Arquitecto?

    Os meus votos que continue a deliciar-nos com a sua escrita.

    Abraços

    Fiquei encantada com este texto

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  10. Caro Saial,
    Eu sei que não escreve por escrever, se eu achasse isso não teria escrito a última frase... Estava a dar a minha perspectiva, não a projectar em ninguém. Todos temos relações diferentes com a escrita. E todos temos incapacidades naturais ou indisponibilidades adquiridas.
    Espero que depois da faladura rumemos directo à Rua de Praia para uns petiscos (pastilim, moreia, funguim) enquanto admiramos a Praia de Bote!
    Cara Ondina, quem escreveu o texto foi a Beatriz Lima Barreiro, não eu. A César o que é de César, como também muito se diz em Cabo Verde.

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    1. ahahahaha, isto quando a gente está a escrever nestes rectângulos, sem estar cara a cara, é uma confusão pegada. É que eu não disse que a Carmo disse isso. Eu só disse que QUERO o primeiro texto (seja QUANDO for e sobre o QUE for, desde que seja acerca de Cabo Verde) mais os outros 99 do seu próximo livro (já nem falo da tese sobre o Carnaval...). 100!... Não se esqueça, 100!

      Braça centenária,
      Djack

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  11. Parabéns Bea pelo lindo texto, parece que te estou a ver com um sorriso a contar-me tudo isso. Dá os parabéns ao avô porque a genética é tramada e por isso a escrita também te está no sangue. Beijos - Adoro-te Princesa.

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  12. Texto lindo da minha princesa. Que bonitas memórias e vivências que os teus avozinhos te proporcionam. São uns avós maravilhosos.
    Beijinhos

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  13. Bem vindo a linda neta do amigo Adriano Lima com estas lindas memórias de CV. Que retorne mais vezes

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  14. Por um lado é uma surpresa e por outro nem por isso. Quem sai os seus...
    A crônica da Beatriz fez-me lembrar o que nos contou uma minha neta, parisiense de nascimento, que vive em Londres.
    Ela foi este ano passar férias e deu um salto a Santo Antão. Dali enviou mensagem à mãe: - "A ilha é tão bonita que me vi a chorar".
    Parabéns à Beatriz e ao baboso do avô.

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  15. Beatriz e Carmo, mil desculpas pela troca de nomes. A pensar na Beatriz Lima Barreiro, aqui representada em lindas fotografias, assentei sem notar, o nome de Carmo. Obrigada pelo reparo.
    Abraços

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