terça-feira, 26 de setembro de 2017

[3174] Piduca Afinado, outro galo da baía do Porto Grande de São Vicente (ver também os dois posts anteriores)

Já publicado em Portugal (2009), lembramos aqui uma pequena parte deste conto escrito por um grande amigo nosso, mindelense de gema, inspirado no galo de Manuel Lopes...


PIDUCA, O GALO BARÍTONO


Piduca Afinado era um galo muito especial: dizia-se que tinha sério problema no relógio biológico, porque cantava a qualquer hora do dia ou da noite, ao contrário dos colegas que só se manifestavam em momentos certos e se tornavam, por isso mesmo, preciosos auxiliares dos proprietários. Havia quem atribuísse, erradamente, essa característica de Piduca ao facto de ele ser o único representante masculino naquele galinheiro do Alto de Santo António. Mas a verdade é que se tratava de simples paixão pelo bel canto, em nada relacionada com o seu harém. Os donos tinham, para além deste passarão de farta plumagem clara, dezanove galinhas, baptizadas com os nomes das ilhas e ilhéus cabo-verdianos, quando necessário, postos no feminino. As pequenas haviam tomado os dos ilhéus: Santa Maria, Luísa Carneira, Sapada, Cima, Pássara, Branca, Rasa, Sala Rainha e Grande (este, um completo contra-senso, em função das curtas dimensões da dita e do motivo inspirador); as de maior porte possuíam os das ilhas, sempre com adaptação feminina, o que dava estranhas designações como Maia, Foga, Santiaga, Nicolina e Vicentina, por exemplo... 

As galinhas passavam o dia a cacarejar sobre assuntos da sua capoeira ou das capoeiras vizinhas, a debicar no milho que D. Leonilde atirava para dentro do habitáculo ou a pôr ou a chocar os seus ovos. Enfim, faziam o que qualquer galinha normal sempre fez no Mindelo – cidade que, no fundo, e no que diz respeito a galináceos, não é muito diferente de Hong Kong, Rio de Janeiro ou Évora. Piduca, porém, fartava-se da tagarelice contínua e solicitações das dezanove esposas que o destino lhe dera, só abrandado nas horas de temperatura mais alta, em que ele próprio era também coagido pelo calor a suspender toda a actividade. Havia uma, porém, a Brava, que lhe agradava mais que as outras, devido à bela e luzidia cor negra a que apenas duas ou três penas brancas no pescoço quebravam a escuridão. Tratava-se de uma poedeira de grande calibre, motivo de inveja das companheiras e de delícias para D. Leonilde, pela quantidade e qualidade dos ovos que com cadência regular despejava nas palhas, berço de futuros frangos. Aliás, era aquela a zona do galinheiro que Piduca mais frequentava, sempre atento ao nascimento dos filhotes que de vez em quando irrompiam das cascas que Brava ajudava a retirar com o bico. Esta dedicação maior de Piduca por Brava já havia sido motivo de diversas brigas em que fora obrigado a separar a sua predilecta dos bicos das restantes consortes que à uma a atacavam – não sem resposta, pois Brava não se deixava ficar. Foi numa dessas refregas que tirou um olho a Boa Vista, o que passou a ser motivo de chacota no galinheiro até ao dia em que D. Leonilde resolveu fazer com a mesma uma canja para o marido, o Sr. Dudu, que estava doente com mal de barriga. 

Para além de cortejar Brava, Piduca tinha dois prazeres: cantar, como acima se disse, e ler. A cantoria, inata mas treinada em audição de discos que o Sr. Dudu punha todas as tardes depois da sesta, fez de Piduca um Caruso sem igual no anfiteatro do Mindelo. Não sem razão, pois era descendente directo do galo que inspirou Manuel Lopes, o tal que «cantou na baía». Piduca também cantava na baía e o seu cocorocó estendia-se pela cidade, com mais clareza durante as madrugadas, tardes e noites ventosas, um pouco mais restritamente noutras alturas, mas chegando sempre até à rua de Lisboa, excepto em dias de Carnaval em que as canções dos componentes dos blocos a abafavam. É claro que a vizinhança não achava grande graça àquele seu hábito de cantar a qualquer momento do dia ou da noite, o que já tinha dado razão a protestos e a altercações frequentes entre os seus proprietários e os moradores das redondezas. Mas a memória do livro de Manuel Lopes era para ele uma espécie de salvo-conduto e para D. Leonilde a garantia que esta propalava aos quatro ventos quando alguém dizia «Calem a m... desse galo!» ou «Cab... do galo que não se cala, ainda te corto o pescoço!»  (continua, mas não aqui...)

6 comentários:

  1. Este nunca o li, pelo que fico à espera de mais informação. Mas suponho que é autor de geração bem mais nova que a do Manuel Lopes.

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    1. Muito mais nova!... É um rapazin d'Ponta d'Praia com o qual vou falar para te mandar o conto completo!

      Braça d'bote,
      Djack

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  2. Ah, és tu o autor, Djack. Ora, ora... Recebi o conto e vou lê-lo na íntegra. O excerto que já li deixou-me muita água na boca.

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    1. Eu? Nada disso! O autor é de facto um tipo meu conhecido que passa a maior parte da vida a vasculhar (e consequentemente a descobrir) coisas de Cabo Verde e que escreve sobre as ilhas mas mora a Praia de Bote (debóxe d'um butim) e não em Almada...

      Braça sem usurpação de autoria,
      Djack

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    2. emenda-se gralha em "mora na Praia de Bote"...

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  3. Pois, o autor é esse mesmo que o Djack descreve. Ele vive num limbo magnífico de onde abarca todo um mundo de seres simultaneamente reais e mágicos. Mas melhor será que esse conto dê à estampa na íntegra.

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